São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008

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+ Marcelo Leite

CNBB vai às compras

Dogmas são universais apenas entre correligionários

Para um ateu useiro e vezeiro em criticar os exageros de propaganda em favor das biotecnologias, é incômodo flagrar-se na companhia de conservadores religiosos.
Tome o exemplo do documento-base da Campanha da Fraternidade de 2008, recém-aberta. Ela tem por lema "Escolha, pois, a vida" e por alvo o aborto e a pesquisa com células-tronco embrionárias (CTEs). Dá para concordar com muita coisa ali (ou ao menos refletir a respeito). Exemplos: "... o caminho da pesquisa é influenciado por interesses de mercado, por interesses políticos, assim como pelas convicções e opções éticas dos pesquisadores" (pág. 14); "Uma célula sempre será uma célula, mas qual célula pesquisar, a importância de determinadas pesquisas ou o uso de um determinado conhecimento sobre as células são questões que dependem de decisões tomadas pelas pessoas" (pág. 15); "... resultados ainda muito preliminares são oferecidos à população como definitivos ou como soluções garantidas para problemas dolorosos. É o caso da pesquisa com células-tronco embrionárias, que vem sendo apresentada como solução a várias doenças, sendo que ainda não apresentou nenhum resultado prático definitivo" (pág. 17);
"Nem todas as possibilidades abertas pela ciência trazem o bem para as pessoas. A prática da ciência deve, portanto, submeter-se ao juízo ético, buscando sempre aquilo que é bom para o ser humano" (pág. 66);
"A expressão "pré-embrião" não é adequada, causa confusão e é usada para conquistar uma liberdade de manipulação" (pág. 69).
Vários desses raciocínios já foram desenvolvidos aqui. Isso não implica, contudo, concordância com o veto que a igreja pretende impor à pesquisa com CTEs. Muito menos com a ação direta de inconstitucionalidade (nº 3.510) contra a Lei de Biossegurança que a permitiu (providencialmente, o Supremo informou também nesta semana que está pronto o voto do relator e que a Adin vai enfim entrar na pauta, três anos depois de apresentada pela Procuradoria Geral da República).
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), patrocinadora da campanha, sucumbe ao vício intelectual de selecionar -entre as raras peças de crítica de ciência- somente aquilo que lhe interessa. Em seguida, acrescenta os seus próprios dogmas para tentar guiar a ética da pesquisa científica, o que é um contra-senso.
Dogmas são universais apenas entre correligionários. É só para eles que faz sentido acrescentar, na última citação acima (a da pág. 69), que a liberdade de manipulação de (pré)-embriões "não se justifica". Ou que a igreja sabe melhor do que ninguém o que é bom para o ser humano.
"O embrião humano não é somente vida humana potencialmente pessoa, mas já é uma pessoa atual em seu ser, no sentido essencial e substancial do termo pessoa, ainda que não apresente um funcionamento consciente, reflexivo e interativo-comunicativo, depositário de interioridade e com capacidade de expressar-se corporalmente", pontifica a CNBB, reproduzindo argumento da bioeticista Elena Lago.
"Portanto, sua natureza humana é um bem que a razão reconhece e a fé afirma como dom de amor proveniente de um Deus Pai."
Qualquer um pode ver, mesmo o mais crente dos cristãos (se não for também irracional), que isso não tem nada a ver com argumentação científica nem jurídica. Não é preciso ser ateu para deixar de acompanhar a CNBB quando vai às compras no varejo crítico para vender dogmas no atacado.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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