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+ Marcelo Leite
CNBB vai às compras
Dogmas são universais apenas entre correligionários
Para um ateu useiro e vezeiro em
criticar os exageros de propaganda em favor das biotecnologias, é incômodo flagrar-se na companhia de conservadores religiosos.
Tome o exemplo do documento-base da Campanha da Fraternidade de
2008, recém-aberta. Ela tem por lema
"Escolha, pois, a vida" e por alvo o
aborto e a pesquisa com células-tronco embrionárias (CTEs). Dá para concordar com muita coisa ali (ou ao menos refletir a respeito). Exemplos:
"... o caminho da pesquisa é influenciado por interesses de mercado, por
interesses políticos, assim como pelas
convicções e opções éticas dos pesquisadores" (pág. 14);
"Uma célula sempre será uma célula, mas qual célula pesquisar, a importância de determinadas pesquisas ou
o uso de um determinado conhecimento sobre as células são questões
que dependem de decisões tomadas
pelas pessoas" (pág. 15);
"... resultados ainda muito preliminares são oferecidos à população como definitivos ou como soluções garantidas para problemas dolorosos. É
o caso da pesquisa com células-tronco
embrionárias, que vem sendo apresentada como solução a várias doenças, sendo que ainda não apresentou
nenhum resultado prático definitivo"
(pág. 17);
"Nem todas as possibilidades abertas pela ciência trazem o bem para as
pessoas. A prática da ciência deve,
portanto, submeter-se ao juízo ético,
buscando sempre aquilo que é bom
para o ser humano" (pág. 66);
"A expressão "pré-embrião" não é
adequada, causa confusão e é usada
para conquistar uma liberdade de manipulação" (pág. 69).
Vários desses raciocínios já foram
desenvolvidos aqui. Isso não implica,
contudo, concordância com o veto
que a igreja pretende impor à pesquisa com CTEs. Muito menos com a
ação direta de inconstitucionalidade
(nº 3.510) contra a Lei de Biossegurança que a permitiu (providencialmente, o Supremo informou também
nesta semana que está pronto o voto
do relator e que a Adin vai enfim entrar na pauta, três anos depois de
apresentada pela Procuradoria Geral
da República).
A Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), patrocinadora da
campanha, sucumbe ao vício intelectual de selecionar -entre as raras peças de crítica de ciência- somente
aquilo que lhe interessa. Em seguida,
acrescenta os seus próprios dogmas
para tentar guiar a ética da pesquisa
científica, o que é um contra-senso.
Dogmas são universais apenas entre correligionários. É só para eles que
faz sentido acrescentar, na última citação acima (a da pág. 69), que a liberdade de manipulação de (pré)-embriões "não se justifica". Ou que a igreja sabe melhor do que ninguém o que
é bom para o ser humano.
"O embrião humano não é somente
vida humana potencialmente pessoa,
mas já é uma pessoa atual em seu ser,
no sentido essencial e substancial do
termo pessoa, ainda que não apresente um funcionamento consciente, reflexivo e interativo-comunicativo, depositário de interioridade e com capacidade de expressar-se corporalmente", pontifica a CNBB, reproduzindo
argumento da bioeticista Elena Lago.
"Portanto, sua natureza humana é um
bem que a razão reconhece e a fé afirma como dom de amor proveniente
de um Deus Pai."
Qualquer um pode ver, mesmo o
mais crente dos cristãos (se não for
também irracional), que isso não tem
nada a ver com argumentação científica nem jurídica. Não é preciso ser ateu
para deixar de acompanhar a CNBB
quando vai às compras no varejo crítico para vender dogmas no atacado.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em
Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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