São Paulo, sábado, 10 de abril de 2004

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MEDICINA

USP e Unifesp usam radiação em cirurgia de tratamento de transtorno obsessivo-compulsivo; técnica vem dos EUA

Raios gama operam o cérebro sem cortes

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Numa parceria com uma universidade americana, pesquisadores brasileiros estão conduzindo no país as primeiras cirurgias de cérebro feitas com uma técnica que não exige abrir a cabeça do paciente. Todo o trabalho é feito com radiação gama, um tipo invisível e altamente energético de luz mais poderoso que raios X.
O objetivo é oferecer uma nova arma no combate a casos de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) que não respondam aos tratamentos convencionais, com medicamentos. Com a polêmica que envolve as cirurgias cerebrais para doenças psiquiátricas, mesmo as que não exigem serrar o crânio do paciente, um dos objetivos do grupo é manter as mentes abertas para a estratégia.
"É uma medida de último caso, mas pode ser um procedimento cada vez mais seguro, caso todos os cuidados sejam tomados", diz Euripedes Constantino Miguel Filho, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Ele é o coordenador do estudo, que está relatado na edição de abril da revista "Pesquisa Fapesp" (revistapesquisa.fapesp.br).
A operação é bem mais simples do que as neurocirurgias tradicionais. Os pesquisadores usam tomografias para identificar o ponto exato no cérebro que deve ser atingido pelos raios gama.
O transtorno obsessivo-compulsivo é uma doença psiquiátrica cujas manias muitas vezes causam até danos físicos ao paciente, como lavar as mãos até que elas sangrem. Acredita-se que esteja ligado ao disparo inadequado de neurônios num circuito do cérebro que liga a base do órgão ao córtex, a região mais externa.
Uma vez determinado o alvo no cérebro, os médicos colocam o paciente numa câmara de cobalto radiativo, parecida com uma câmara de ressonância magnética. Dentro dela, a cabeça fica envolvida por uma espécie de redoma com 201 pequenos furos.
Na região do cérebro em que os raios gama vindos dos furos se cruzam acontece o efeito desejado -uma pequena lesão mata os neurônios cujo disparo é anormal. "Após a cirurgia, o paciente levanta e vai embora para casa", descreve Miguel Filho.
O que não quer dizer que não ocorram efeitos colaterais. O mais comum são dores de cabeça, mas efeitos imprevisíveis podem acontecer. "Houve um caso, na Universidade Brown [EUA], em que o paciente teve um problema com apatia, passou a ser uma pessoa com muita falta de iniciativa. Mas menos da metade dos pacientes sofre um efeito colateral."
No caso de cirurgias com abertura do crânio, os danos são mais freqüentes. Podem ocorrer infecções ou até inchaço do cérebro.
A Universidade Brown já usa a técnica dos raios gama para tratamento de TOC há quase dez anos. No Brasil, as primeiras operações ocorreram em dezembro passado. Já foram feitas cinco, mas Miguel Filho considera cedo demais para comentar os resultados. É preciso esperar ao menos um ano para avaliar os pacientes.
Agora o grupo brasileiro pretende dar um salto ainda maior: conduzir o primeiro estudo do tipo "duplo-cego" com a cirurgia.
A idéia é medir o quanto a evolução dos pacientes está ligada ao chamado efeito placebo (melhora do quadro médico pela crença do paciente de que recebeu tratamento eficiente, mesmo quando não foi de fato tratado).
Serão recrutados 48 pacientes para o estudo. Apenas metade deles receberá a injeção de raios gama da cirurgia, mas nem os médicos nem os pacientes saberão quais foram realmente operados -daí o nome "duplo-cego".
Após um ano, os médicos serão informados sobre quem recebeu de fato o tratamento e os cientistas poderão comparar a evolução de todos os casos. Após a revelação, os pacientes não-operados poderão passar pelo procedimento, se desejarem.
A pesquisa de R$ 2 milhões foi financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pelo Instituto de Radiocirurgia de São Paulo e pelo Hospital Santa Paula. Os estudos foram conduzidos por especialistas de psiquiatria e neurocirurgia da USP e psiquiatras da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).


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