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ENTREVISTA DA 2ª
DANIEL DENNETT
As pessoas têm de aprender a conviver com os "sem-deus"
Para filósofo americano, em algumas áreas dos EUA os ateus ainda sofrem a mesma discriminação que os homossexuais sofriam na década de 1950
QUANDO DEZEMBRO chega, diversão é o
que não falta na vida do filósofo americano Daniel Dennett, 68. Além de ser tomado por Papai Noel pelas crianças
mais empolgadas, o pesquisador ainda organiza sessões caseiras de música natalina.
Só não o convide para a Missa do Galo: ele é um
dos mais articulados defensores do ateísmo de inspiração científica.
Autor de "A Perigosa Ideia de Darwin" e "Quebrando o Encanto", Dennett se especializou em explicar com clareza os conceitos-chave da teoria da evolução, usando-a para abordar temas como a natureza da consciência e as origens da religião.
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Ele afirma que tentar conciliar os dados da biologia evolutiva com a crença em Deus é um
ato de desespero intelectual. Os
que fazem isso, ataca, "estão
apresentando como ciência o
que, na verdade, é uma espécie
de confusão na cabeça deles".
Diz também que se declarar
ateu hoje em algumas regiões
dos EUA é o equivalente a se
declarar homossexual nos anos
1950, e que a onda recente de livros escritos por cientistas
ateus militantes está ajudando
a tirar o ateísmo do armário.
Dennett, que estará no Brasil
no dia 8 de novembro para participar do seminário Fronteiras
do Pensamento, em Porto Alegre (www.fronteirasdopensamento.com.br), conversou com a Folha por telefone. Leia abaixo a entrevista.
FOLHA - Há um grupo de cientistas
nos EUA, como Francis Collins, ex-chefe do Projeto Genoma Humano,
que são defensores da teoria da evolução e, ao mesmo tempo, tentam
conciliá-la com sua fé cristã. Mas
têm sido muito atacados, até acusados de criacionistas disfarçados. O
sr. concorda com tais críticas?
DANIEL DENNETT - Acho que essas
pessoas têm dois padrões diferentes para o que consideram
pensamento racional.
Quando estão fazendo ciência, adotam um padrão elevadíssimo e, quando estão tentando reconciliar sua ciência
com sua religião, acabam aceitando que esse padrão caia um
pouco, tolerando argumentos
que nunca tolerariam numa
discussão científica.
Não acho que sejam criacionistas, mas acho que eles estão
apresentando como ciência o
que, na verdade, é uma espécie
de confusão na cabeça deles.
FOLHA - Mas eles deixam claro que
a reconciliação não é ciência nem está cientificamente comprovada.
DENNETT - E até que é uma boa
tentativa, mas não acho que
funcione bem. Podemos colocar da seguinte maneira: a biologia, a teoria evolutiva, não
prova de forma absoluta que
não pode existir um Deus. Se
você quer continuar a acreditar
que Ele desempenha algum papel, pode até fazer isso com sua
consciência tranquila.
Mas você deveria ter em
mente que se trata de uma posição que é quase um ato de desespero, não é uma visão positiva de maneira alguma. É uma
espécie de último recurso.
Terminei recentemente um
livrinho que deve ser lançado
em breve, um debate com o filósofo cristão Alvin Plantinga.
E Plantinga argumenta, corretamente, que a teoria evolutiva
é logicamente compatível com
a crença num Criador que intervém no processo evolutivo.
Admiti que isso era verdade,
mas disse que a evolução também é compatível com a hipótese de que o Superman pousou
aqui durante a Explosão Cambriana [evento em que surgiram todos os principais grupos
de animais], há 530 milhões de
anos e, assim, possibilitou a origem dos humanos. É uma hipótese totalmente doida, mas é
coerente com tudo o que sabemos sobre biologia evolutiva.
FOLHA - A onda recente de livros
escritos por cientistas que também
são ateus militantes surgiu, de acordo com os próprios autores, porque
a posição acomodacionista em relação à religião não estava funcionando. E essa nova abordagem? O sr.
acha que está funcionando?
DENNETT - Acho que sim, por
enquanto, embora estejamos
só no começo. Nos EUA, acho
que houve uma mudança clara
nos padrões de expressão pública. Hoje é muito mais comum ouvir as pessoas dizerem
abertamente que não acreditam em Deus, que elas são
"sem-deus". Pesquisas recentes mostram que esse é o grupo
que mais cresce na população.
E, toda vez que alguém se declara abertamente, que se sente
encorajado a dizer isso, a atmosfera fica um pouco mais
limpa, e a vida fica um pouco
mais fácil para outras pessoas.
Ainda há enormes áreas do país
onde, se você disser que não
acredita em Deus, vai perder
seus amigos, seu negócio. Nesse ponto, os ateus estão mais ou
menos na mesma posição em
que estavam os homossexuais
nos anos 1950, ou seja, se você
admitir que pertence a esse
grupo, sua vida está arruinada.
Temos de mudar isso. Temos
de fazer com que seja possível
para um morador do "Cinturão
da Bíblia" [as áreas mais religiosas dos EUA, nos Estados do
Sul e do Meio-Oeste] dizer com
toda a franqueza: "Bem, você
pode ter sua religião, se quiser,
mas eu não sou religioso" e ser
respeitado mesmo assim.
FOLHA - No livro "Quebrando o Encanto", sobre a tentativa de explicar
as origens da religião com base na
biologia evolutiva, o sr. passa a impressão de defender mais a ideia de
que a religião é só um subproduto
de características da mente humana
que evoluíram por outros motivos.
Sua posição contra a religião pode
ter influenciado essa opinião?
DENNETT - Acho que é importante perceber que as duas visões não são necessariamente
conflitantes. Há uma posição
óbvia, natural, que diz que primeiro a religião emerge como
subproduto de predisposições
psicológicas que não têm nada
a ver com a religião, e então, depois que ela passa a existir, acaba sendo aproveitada para outras funções, evoluindo, digamos, social e culturalmente.
Desse jeito, você pode manter ambas as vertentes, e na
verdade acho que esse modelo é
bem mais plausível do que uma
visão puramente ligada à adaptação, porque é muito difícil
imaginar quais teriam sido as
pressões de seleção [para que a
religião surgisse].
FOLHA - O que o sr. acha da dificuldade das ciências humanas para incorporar a biologia evolutiva na sua
maneira de pensar?
DENNETT - Para mim é engraçado ver a quantidade de antidarwinistas "automáticos" existente nas humanidades, na filosofia. Foi o reconhecimento
disso que me levou a escrever
"A Perigosa Ideia de Darwin".
Hei de ir em frente com bom
humor e vou mostrar a eles o
quão reacionários estão sendo.
FOLHA - Mas por que a resistência?
DENNETT - Acho que eles estão
muito presos à ideia que poderíamos chamar de criatividade
de cima para baixo, na qual você tem um autor que é o gênio, a
fonte das ideias. Essa visão está
impressa de modo tão fundo
nas artes e nas humanidades
que a ideia de que na verdade a
coisa está de ponta-cabeça, que
os próprios grandes gênios são
o produto complexo de processos "sem mente", algorítmicos,
de baixo para cima -essa é uma
ideia muito difícil de engolir
para muita gente.
A primeira coisa que nós temos de mudar é o hábito dos especialistas em ciências humanas de zombar dessas ideias e
ridicularizá-las. A zombaria deles é obscurantista, ignorante.
FOLHA - Qual a sua visão sobre o
estado atual da pesquisa em inteligência artificial? Por que ainda estamos tão longe de conseguir criar
uma máquina consciente?
DENNETT - Algumas pessoas que
começaram a estudar a IA [inteligência artificial] não estavam interessadas em consciência, mas apenas em produzir alguns sistemas cognitivos extremamente competentes. Essa
abordagem foi um sucesso. Não
chamamos isso de IA, mas agora faz parte das nossas vidas, seja no caso do reconhecimento
de voz, no planejamento de reservas de voo, no controle de
diversos elementos dos nossos
automóveis. Em certo sentido,
tudo isso é inteligência artificial.
Quando as pessoas pensavam em robôs 20 anos ou 30
anos atrás, imaginavam humanoides que seriam mordomos,
arrumadeiras ou cozinheiros.
Esses robôs não existem, mas
ao menos parte dessas tarefas
hoje são rotineiramente delegadas ao controle de computadores. Então, esse primeiro sonho se realizou, de fato.
O outro sonho da IA, o de
realmente construir um robô
consciente, sempre foi loucamente ambicioso, e uma das
coisas que aprendemos foi exatamente a dimensão dessa dificuldade. A robótica humanoide
continua, mas acho que nunca
criaremos um robô humanoide
consciente. Custaria mais do
que pousar na Lua.
FOLHA - Em "A Perigosa Ideia de
Darwin" o sr. diz que, ainda que não
seja possível ou sensato rezar para o
Universo, a ciência proporciona uma
espécie de assombro transcendental diante dele. Nesse ponto, a ciência e a religião não se aproximam?
DENNETT - Sim, eu acho que a
melhor ideia da religião é encorajar uma certa modéstia, um
respeito e uma reverência pela
natureza neste incrível Universo que nós habitamos. E, claro,
isso remonta diretamente a
[Baruch] Spinoza [filósofo holandês do século 17], para quem
o caminho para estudar Deus é
estudar a natureza. Acho que o
respeito e o amor por este mundo maravilhoso no qual existimos, que pode nos inspirar a
melhorá-lo para outras pessoas, é a melhor mensagem da
religião, e a ciência pode compartilhar esse sentimento.
FOLHA - O sr. ainda participa de corais de Natal?
DENNETT - Sim, todos os anos
fazemos uma festa dedicada a
canções natalinas, temos nosso
próprio livro de partituras que
eu fui montando com todo o carinho ao longo dos anos. É lindo. Costumam aparecer umas
30 pessoas, talvez algumas delas sejam religiosas, mas a
maioria deles é como eu. Somos
cristãos culturais -crescemos
com essas músicas e adoramos,
então mantemos a tradição viva. E, sim, a criançada às vezes
ainda me confunde com Papai
Noel.
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