São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2004

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CLIMA

Estudo diz que Terra não entraria em fase gelada por mais 15 mil anos, mas ação humana torna futuro imprevisível

Gelo antártico detalha oito ciclos glaciais

Divulgação/British Antarctic Survey
Pesquisador expõe fatia do núcleo de gelo extraído na Antártida


SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Parece até um filme ao estilo de "Quatro Casamentos e um Funeral", mas "Oito Ciclos Glaciais de um Núcleo de Gelo Antártico" é o título de um artigo científico publicado na revista britânica "Nature" (www.nature.com). A moral da história é que provavelmente os seres humanos poderiam contar com um clima hospitaleiro em seu planeta por pelo menos mais uns 15 mil anos, não fosse por eles mesmos.
O estudo reporta os resultados do Epica, Projeto Europeu para Núcleos de Gelo na Antártida, na sigla em inglês. Financiado com cerca de US$ 20 milhões, o esforço consiste em escavar longos cilindros de gelo no continente gelado e, a partir de análises com o material preso no interior da água congelada (que pode incluir poeira e pequenas bolhas com amostras da atmosfera), extrair conclusões sobre o clima da Terra.
Assim como acontece de um modo geral com expedições paleontológicas que procuram por dinossauros em terra, quanto mais profunda é a escavação, mais antigo é o solo retirado. No caso gelado, os pesquisadores liderados por Eric Wolff, do departamento de pesquisa antártica do Reino Unido, retiraram uma barra de gelo com mais de 3 km de comprimento (3.190 m).
O cilindro obtido quase duplica a quantidade de informações sobre as últimas oito eras glaciais enfrentadas pela Terra. Com base em outras pilhas de gelo também tiradas da Antártida, os cientistas já haviam perscrutado cerca de 430 mil anos no passado. O presente estudo faz o número saltar para 740 mil anos, com a possibilidade de chegar a até 817 mil, quando tudo estiver analisado.
A estimativa de idade se baseia no ritmo de deposição da neve, ano após ano. Calcula-se que a cada 365 dias se acumule o equivalente a 2,5 centímetros de água.
Ao que parece, o clima da Terra opera de acordo com um ciclo, alternando entre períodos mais frios (eras glaciais) e interlúdios mais quentes (períodos interglaciais). "Os ciclos recomeçam mais ou menos a cada 100 mil anos", diz Wolff. "Mas não é exato. Suponho que muitos fatores determinem exatamente quando uma mudança começa, porque é uma resposta não-linear."
Atualmente, o planeta experimenta uma dessas fases benignas -já há 12 mil anos. Detalhe: a média de duração para esses períodos é 10 mil anos. A julgar só por isso, seria bom não esquecer o casaco, da próxima vez que sair de casa. Mas talvez ainda haja um bom tempo antes que o frio volte.
É uma das conclusões mais fascinantes da nova pesquisa. Os cientistas apostam que o atual período interglacial é muito similar ao que ocorreu há 430 mil anos -foi o mais longo de todos, com cerca de 28 mil anos de duração.
Há uma razão para essa correlação. "Esse paralelo é esperado porque a forma da órbita da Terra em torno do Sol é muito similar nos dois períodos", explica Wolff. "Isso só volta a ocorrer a cada 400 mil anos. Normalmente, a órbita é mais elíptica [oval], mas agora está quase circular." Outros elementos astrofísicos, como a inclinação do eixo de rotação terrestre, também coincidem.
"Esses aspectos controlam quanta luz solar a Terra recebe e em quais estações", complementa Jerry McManus, da Instituição Oceanográfica Woods Hole, nos EUA, que comentou o estudo europeu para a "Nature".
Seria razão para comemorar, não fosse uma coisa: a ação humana torna tudo imprevisível.
Com base nas análises de gás aprisionado no gelo, é possível saber em que quantidades as substâncias capazes de intensificar o aprisionamento do calor na atmosfera -causando o famoso efeito estufa- estiveram presentes na atmosfera terrestre ao longo do tempo. E nunca o planeta viu tanto gás carbônico no ar, segundo os cientistas.
"O conteúdo de CO2 na atmosfera é hoje maior do que qualquer um medido até agora no núcleo de gelo", diz Wolff. "Isso significa que estamos numa situação sem análogos, e isso provavelmente perturba o ciclo natural."
Em resumo: saia de camiseta, mas, por segurança, leve o capote de inverno, porque ninguém sabe ao certo o que o futuro reserva.


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