|
Texto Anterior | Índice
+ Marcelo Leite
O gene de sal
Genômica por atacado é ciência insossa e sem hipótese
A
última edição do periódico britânico "Nature" divulga um
verdadeiro "tour de force" genético: 17 mil pessoas tiveram meio
milhão das 3 bilhões de letras de cada
genoma comparadas entre si por 50
grupos de pesquisa do Reino Unido. O
esforço possibilitou identificar 24
pontos característicos associados com
sete doenças comuns.
As moléstias investigadas foram artrite reumatóide, hipertensão, doença
de Crohn (inflamação crônica do intestino), doença coronariana, transtorno bipolar (psicose maníaco-depressiva) e diabetes tipos 1 e 2. Os 17
mil investigados eram portadores de
pelo menos uma dessas condições, ou
então pessoas saudáveis incluídas
num grupo de controle.
Na realidade, só 12 dos 24 marcadores genéticos localizados são novos. A
outra dúzia só confirma associações
conhecidas de trechos do genoma
com as enfermidades. Mesmo assim,
um feito e tanto do estudo organizado
pelo Wellcome Trust, conhecido pela
sigla WTCCC, o maior do gênero já
realizado. Por que, então, o WTCCC
não chega a entusiasmar?
Parte da resposta tem a ver com o
fato de ter localizado "marcadores genéticos", e não "genes". Identificados
no levantamento foram pontos variáveis do genoma. Ou seja, uma letra no
meio de algum cromossomo, ou o que
se chama de polimorfismo de nucleotídeo único (SNP, em inglês; pronuncia-se "snip").
Alguns estão no meio de genes. Outros, no meio de nada (desertos gênicos, longos trechos de DNA cuja seqüência de letras A, T, C ou G não especificam aminoácidos para composição de proteínas).
Não se conhece sua função, portanto. Só se sabe que parcela estatisticamente significativa de portadores daquelas doenças tem determinada letra
num daqueles 500 mil pontos do genoma. Os saudáveis tendem a ter ali
outras letras.
Não são mais que marcadores genéticos de suscetibilidade para as moléstias, indicativos de risco aumentado,
no máximo duplicado. Se uma pessoa
qualquer tem chance de 5%, digamos,
de desenvolver diabetes 2 ao longo da
vida, um portador da letra tal no ponto tal do genoma teria risco de 10%.
A descoberta nada diz sobre o mecanismo que leva às enfermidades. Nem
sobre as pessoas que dela sofrem sem
carregar nas células as variações genéticas indigitadas.
Isso não quer dizer que se trate de
conhecimento inútil. Algum dia o mecanismo bioquímico de uma dessas
seqüências poderá ser elucidado,
quem sabe encaixado numa via metabólica associada com a doença e, com
sorte, desenvolvido a partir disso um
medicamento eficaz e não tóxico.
Inúmeras condições improváveis
encadeadas suscitam a desconfiança
sobre a eficiência nesse processo de
descoberta de baixo para cima, de genômica por atacado. Ciência insossa,
sem hipótese nem grãos de sal.
A propósito, na semana que passou
recebi de Jeremy Squire, da Universidade de Toronto, uma indicação preciosa de leitura: "Por que Estamos
Perdendo a Guerra contra o Câncer",
reportagem de Clifton Leaf na revista
"Fortune" de... 22 de março de 2004.
Nada a ver com as reportagens otimistas que você costuma ler em semanários nacionais.
Leaf mostra que o investimento de
US$ 200 bilhões nesse guerra declarada em 1971 pelos EUA trouxe poucos
avanços em redução da mortalidade
nos cânceres mais comuns, quando
controlada por faixa etária. Ele culpa
por isso um sistema de pesquisa mais
voltado para premiar a publicação de
artigos -mais de 1,5 milhão!- sobre
pequenos avanços na cura de tumores
em... camundongos.
MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma"
(Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência
em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Primitivos quem, cara-pálida? Índice
|