São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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+ Marcelo Leite

O gene de sal

Genômica por atacado é ciência insossa e sem hipótese

A última edição do periódico britânico "Nature" divulga um verdadeiro "tour de force" genético: 17 mil pessoas tiveram meio milhão das 3 bilhões de letras de cada genoma comparadas entre si por 50 grupos de pesquisa do Reino Unido. O esforço possibilitou identificar 24 pontos característicos associados com sete doenças comuns.
As moléstias investigadas foram artrite reumatóide, hipertensão, doença de Crohn (inflamação crônica do intestino), doença coronariana, transtorno bipolar (psicose maníaco-depressiva) e diabetes tipos 1 e 2. Os 17 mil investigados eram portadores de pelo menos uma dessas condições, ou então pessoas saudáveis incluídas num grupo de controle.
Na realidade, só 12 dos 24 marcadores genéticos localizados são novos. A outra dúzia só confirma associações conhecidas de trechos do genoma com as enfermidades. Mesmo assim, um feito e tanto do estudo organizado pelo Wellcome Trust, conhecido pela sigla WTCCC, o maior do gênero já realizado. Por que, então, o WTCCC não chega a entusiasmar?
Parte da resposta tem a ver com o fato de ter localizado "marcadores genéticos", e não "genes". Identificados no levantamento foram pontos variáveis do genoma. Ou seja, uma letra no meio de algum cromossomo, ou o que se chama de polimorfismo de nucleotídeo único (SNP, em inglês; pronuncia-se "snip"). Alguns estão no meio de genes. Outros, no meio de nada (desertos gênicos, longos trechos de DNA cuja seqüência de letras A, T, C ou G não especificam aminoácidos para composição de proteínas). Não se conhece sua função, portanto. Só se sabe que parcela estatisticamente significativa de portadores daquelas doenças tem determinada letra num daqueles 500 mil pontos do genoma. Os saudáveis tendem a ter ali outras letras.
Não são mais que marcadores genéticos de suscetibilidade para as moléstias, indicativos de risco aumentado, no máximo duplicado. Se uma pessoa qualquer tem chance de 5%, digamos, de desenvolver diabetes 2 ao longo da vida, um portador da letra tal no ponto tal do genoma teria risco de 10%. A descoberta nada diz sobre o mecanismo que leva às enfermidades. Nem sobre as pessoas que dela sofrem sem carregar nas células as variações genéticas indigitadas.
Isso não quer dizer que se trate de conhecimento inútil. Algum dia o mecanismo bioquímico de uma dessas seqüências poderá ser elucidado, quem sabe encaixado numa via metabólica associada com a doença e, com sorte, desenvolvido a partir disso um medicamento eficaz e não tóxico. Inúmeras condições improváveis encadeadas suscitam a desconfiança sobre a eficiência nesse processo de descoberta de baixo para cima, de genômica por atacado. Ciência insossa, sem hipótese nem grãos de sal.
A propósito, na semana que passou recebi de Jeremy Squire, da Universidade de Toronto, uma indicação preciosa de leitura: "Por que Estamos Perdendo a Guerra contra o Câncer", reportagem de Clifton Leaf na revista "Fortune" de... 22 de março de 2004. Nada a ver com as reportagens otimistas que você costuma ler em semanários nacionais.
Leaf mostra que o investimento de US$ 200 bilhões nesse guerra declarada em 1971 pelos EUA trouxe poucos avanços em redução da mortalidade nos cânceres mais comuns, quando controlada por faixa etária. Ele culpa por isso um sistema de pesquisa mais voltado para premiar a publicação de artigos -mais de 1,5 milhão!- sobre pequenos avanços na cura de tumores em... camundongos.


MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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