São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005 |
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+ ciência Paleontólogos e cineastas brasileiros submergem em águas subterrâneas, na Bahia, para trazer à tona preguiças gigantes e mamíferos da era do Gelo Mergulho no tempo
REINALDO JOSÉ LOPES
"Se cair uma chuva e der uma lubrificada, essa pedra aqui cai fácil", brinca Ivo Karmann, apontando para uma rocha do teto que está equilibrada de forma aparentemente bem precária acima de sua cabeça. A cara de queijo suíço do relevo ali é típica de uma formação geológica conhecida como carste, explica ele. No Pré-Cambriano, há mais de 600 milhões de anos, toda aquela rocha calcária estava no fundo do mar primitivo onde se formou. Bem mais recentemente, nos últimos milhões ou mesmo centenas de milhares de anos, ela se tornou o fundo de uma dolina, depressão típica do relevo cárstico. As dolinas nascem de dentro para fora: originalmente, são espaços subterrâneos regados por uma corrente lenta, cujo teto acaba desabando, como aconteceu no Poço Azul. No carste, às vezes a água aflora na superfície, às vezes escapa de vez para debaixo da terra, por meio dos chamados sumidouros. Um fundo de dolina como o Poço Azul funciona como um grande ralo -o que ajuda a explicar, diz Karmann, por que o lugar está tão cheio de ossos de animais. "Alguns dos animais que morriam eram carregados para a água da dolina. Depois, o fluxo de água ia levando esses restos a uma velocidade baixa e constante, até encontrar um estrangulamento - um local onde a água passa rapidamente, mas os ossos ficam presos. Faça isso 10 mil vezes e você tem esse resultado", diz o geólogo. Parque Pleistocênico E que resultado, mesmo deixando de lado as espécies modernas (como porcos-do-mato) que também foram parar lá. Além de quatro espécies de preguiça gigante, as feras da Era do Gelo brasileira são representadas pelo mastodonte Stegomastodon, com dimensões que lembram a de um elefante asiático moderno; por algumas placas do casco de um pampatério, tatu que podia chegar a 3 m de comprimento e 400 kg; e outro grande herbívoro, o Toxodon. Esse era uma esquisitice completa: um mamífero de casco que evoluiu um corpanzil bem parecido com os rinocerontes e hipopótamos da Ásia, sem ter nenhuma relação próxima de parentesco com esses bichos. Assim como preguiças, tatus e tamanduás, ele é exclusivo do continente-ilha da América do Sul. "Olha que coisa fantástica. Essa é uma das melhores soluções para mastigar grama", empolga-se o paleontólogo Cartelle, mostrando um dos incisivos superiores do toxodonte, que mais parece um bumerangue supercrescido. Ele explica a necessidade de enfrentar os fitólitos, corpúsculos minerais produzidos pela grama e capazes de desgastar até a dentadura mais reforçada. Os toxodontes desenvolveram dentes que cresciam sem parar, assim como os das preguiças. Ao contrário delas, no entanto, a cobertura dos ditos cujos não incluía só dentina (nos seres humanos, a camada logo abaixo do esmalte), mas também esmalte propriamente dito, em camadas alternadas. Isso significa que a ponta do dente mantinha sempre uma lâmina afiada de esmalte, pronta para picotar a grama. Desaparecimento Falar de bichos tão adaptados a um modo de vida inevitavelmente parece pedir um porquê para sua extinção. Gerry de Iuliis, que diz sempre ter se sentido atraído pelas preguiças por serem animais "estranhos e maravilhosos", avalia que uma explicação definitiva ainda está distante. "No momento, o debate sobre isso na América do Norte está feroz", afirma. Apesar do impacto das teorias do "overkill" (a matança indiscriminada das preguiças e de todos os outros mamíferos da América pelas mãos dos primeiros humanos que chegaram ao continente), "só há dois bons sítios com alguma evidência de que isso tenha acontecido." "No Brasil, não há praticamente nada nesse sentido", afirma Chagas, para quem não dá para explicar o sumiço da megafauna, como o conjunto desses animais é conhecido, com apenas um fator. A maioria dos estudiosos brasileiros aposta nas motivações climáticas. Preguiças, toxodontes, pampatérios e seus predadores, como o famigerado dente-de-sabre Smilodon populator, eram todos bichos nascidos e criados em ambiente aberto. Com o aumento da umidade e da temperatura no fim do Pleistoceno, as florestas fechadas teriam se expandido, fazendo encolher de forma insustentável a savana que era o lar das criaturas. Segundo Karmann, o aperto pode ter começado já no período mais frio da glaciação, há uns 15 mil anos. Imaginava-se que esse momento tivesse causado uma expansão das savanas, mas dados recentes indicam que, na verdade, a umidade e as florestas aumentaram, ao menos no Brasil. No momento, a equipe parece mais preocupada mesmo é com a extinção dos seus membros subaquáticos. Depois de trazer são e salvo o fêmur para a superfície (e ouvir um "Beautiful!" da boca de De Iuliis, que recebeu o osso), Schargel soa um tanto aflito no microfone que usa para se comunicar por rádio com os colegas. Diz que perdeu o cabo-guia (um verdadeiro cordão umbilical, usado pelos mergulhadores para direcioná-los no caminho de volta à superfície). A informação é passada para a equipe reserva de mergulhadores, que estavam fora da caverna, e a dupla desce a escada de madeira numa carreira meio desesperada, quase atropelando quem está sentado nos degraus (e os sujeitos são parrudos). Por sorte, é alarme falso: a voz de Schargel logo se faz ouvir de novo no rádio, explicando que a trupe já achou (literalmente) o fio da meada. Passam-se vários minutos até que as pessoas fora d'água entendam o porquê do atropelo. Os mergulhadores sobem à tona carregando um embrulho enorme e, pelo visto, pesado à beça. Dentro está um pedaço avantajado da pelve da Eremotherium. Schargel tinha prometido à equipe trazer a pelve inteira, mas pelo visto (e para a sorte dele) não deu certo. "Ainda faltam dois pedaços, aqui e aqui", diz Cartelle, gesticulando para que o mergulhador tenha uma idéia do formato. Schargel faz uma cara de quem pede socorro. "A visibilidade estava de 1% lá embaixo", diz Schargel, pedindo para que uma nova turma tome o lugar deles na água. A luz do Sol brinca pela última vez com o azul do lago enquanto a equipe de filmagem sobe para fora. Ao vislumbrar a colheita do dia enquanto ajuda a recobrir os ossos com uma camada protetora de gesso, Cartelle abre mais um dos seus sorrisos marotos. "E ainda me pagam para fazer isso!" O jornalista Reinaldo José Lopes viajou a convite da produtora Grifa Mixer Texto Anterior: Ciência em Dia: A explosão fria do DNA Índice |
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