São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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BIOTECNOLOGIA

Experimentos fora do corpo tornaram células humanas imunes, mas ainda há vários desafios à aplicação

Nova terapia genética ataca Aids e pólio

STEVE CONNOR
DO "THE INDEPENDENT"

Um desenvolvimento revolucionário em genética levantou a possibilidade de curar câncer a tratar infecções virais letais usando uma técnica descoberta por um grupo de cientistas com uma série de experimentos pioneiros.
Os pesquisadores estão comparando a descoberta aos primeiros dias do desenvolvimento de antibióticos, que alteraram radicalmente o modo pelo qual os médicos tratavam infecções bacterianas no século 20.
Estudos conduzidos no mês passado nos EUA e na Europa mostraram que o uso da técnica faz células humanas colocadas em um tubo de ensaio resistirem aos efeitos do vírus da pólio e do HIV (causador da Aids). Os pesquisadores acreditam que o expediente também funcionará contra câncer, podendo até resolver problemas de rejeição em transplantes.
Gordon Carmichael, professor de microbiologia na Universidade de Connecticut em Farmington (EUA), consultor científico da revista "Nature", disse que o processo conhecido como interferência de RNA (RNAi) espantou os cientistas por seu poder de combater vírus e tumores, ao desligar ou "silenciar" genes daninhos.
"Em biologia, nos últimos 18 meses, houve uma revolução. Está até mudando o modo pelo qual estamos desenvolvendo os experimentos", disse Carmichael.
"Estamos tentando desligar os genes dos vírus e do câncer há anos. Isso funciona. Está se mostrando uma nova abordagem para tratamento anticâncer e antivirótico", afirmou.
Os cientistas enfatizam que a técnica ainda está na infância e que será preciso pelo menos dois anos antes de qualquer teste clínico com humanos. Eles estão otimistas com a possibilidade de ela ser altamente eficiente e não ter nenhum dos efeitos colaterais do tratamento convencional.
Companhias de biotecnologia já estão pedindo direitos de patente e carreando milhões de dólares para o desenvolvimento da técnica para propósitos médicos. Um grupo de cientistas recebeu US$ 15 milhões na semana passada para desenvolver um tratamento para hepatite e câncer.

Histórico da RNAi
A história da descoberta remonta a 1990, mas a revolução real aconteceu em 1998, quando Andrew Fire, na Carnegie Institution da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore (EUA), descobriu que o RNA -um primo próximo do DNA, molécula-código da herança das características genéticas- podia desligar genes.
Fire apelidou o efeito de "interferência de RNA" (RNAi) e a explicou com a idéia de que genes podem ser silenciados seletivamente. Significa que genes defeituosos que fazem tumores crescerem, ou genes usados por um vírus para se reproduzir, poderiam assim ser desligados.
O salto ocorreu numa série de experimentos este ano, que envolveu o teste da idéia em células humanas. Fire apenas havia mostrado que a coisa funcionava em um pequeno verme nematóide.
Dois grupos independentes de pesquisadores demonstraram que células humanas num tubo de ensaio podem ser modificadas para resistir à infecção com o HIV. Um terceiro descobriu que o método funciona contra o vírus da pólio, de um modo que eles acham que será eficiente contra outros vírus humanos.

Sob medida para o alvo
Uma idéia para tratamento da Aids é tirar as células do sangue de uma pessoa e modificá-las usando a RNAi para torná-las imunes ao HIV. O paciente deveria então se tornar resistente à infecção.
A beleza do processo é ser altamente específico para o gene que foi selecionado como alvo. A interferência não resultaria no silenciamento de outros genes importantes, disse Carmichael.
Isso é importante quando se trata de possíveis efeitos colaterais. "Se você projetá-lo contra o HIV, então não há praticamente possibilidade de que ele resulte em um sistema que ataque o DNA do próprio paciente", disse.
Um problema significativo que ainda precisa ser trabalhado, entretanto, é como garantir que todas as células do paciente que precisam ser tratadas com RNAi vão passar pelo processo. "É um problema de entrega -como levar os ingredientes ativos às células que precisam deles."
Várias equipes de cientistas já estão trabalhando no esforço e experimentos em camundongos indicam que o tratamento de RNAi será mais fácil em órgãos que têm um rico suprimento sanguíneo, como o fígado e os rins.
Apesar das dificuldades que restam, o poder da técnica animou os cientistas. "Uma vez que aprendemos as regras, ficou bem mais simples do que imaginávamos. Pode ser um meio poderoso de atacar vírus e câncer. É uma revolução", defende Carmichael.
Fire disse que há grande empolgação na comunidade científica sobre o potencial do RNAi, embora ainda haja muitas barreiras. Pelo menos, disse, vai explodir o entendimento do genoma humano.
"É muito promissor. Mesmo se não for usado como um instrumento terapêutico, será inquestionavelmente útil para muitas coisas, para descobrir quais genes fazem o quê", disse.



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