São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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Ciência em Dia

Vioxx e a questão da confiança

Marcelo Leite
colunista da Folha

Levante a mão quem nunca tomou Vioxx. Em família, era piada: quando um médico não sabia o que receitar, mandava tomar o antiinflamatório, cujo princípio ativo tem nome bem menos charmoso: rofecoxibe, um dos coxibes, inibidores seletivos de cicloxigenase. Com tantos "x", não é de estranhar que os luminares do marketing tenham acomodado dois na marca da panacéia, mas o fato é que sua criatividade não foi capaz de dourar o maior recall de pílulas do planeta.
No final do mês passado, a droga foi retirada do mercado, por aumentar o risco de problemas cardíacos e derrames. Até aí, parece normal: um remédio tem efeitos colaterais sérios detectados e sai de cena, por precaução. Ponto para as autoridades reguladoras, no caso a FDA (agência de alimentos fármacos dos Estados Unidos), e para o fabricante, a Merck (no Brasil, Merck Sharp & Dohme).
Não foi bem assim, como está vindo à tona. Havia já vários sinais desses problemas com o remédio aprovado em maio de 1999 pela FDA, desde então ministrado a 80 milhões de pessoas, gerando vendas anuais de US$ 2,5 bilhões. Dois relatos acabrunhantes sobre o caso acabam de ser divulgados eletronicamente pela publicação especializada "The New England Journal of Medicine". (www.nejm.org)
Um dos artigos é do médico Eric J. Topol, da Cleveland Clinic. O primeiro problema por ele apontado é que os dados de um estudo com 8.076 pacientes, base da aprovação pela FDA, só viriam a ser publicados um ano e meio depois numa revista auditada (como a "NEJM", cujos artigos são revisados por consultores independentes). A primeira reunião para discutir prováveis efeitos cardiovasculares da droga só seria convocada pela FDA em fevereiro de 2001, quase dois anos depois de aprová-la.
Seis meses depois, em agosto de 2001, Topol e outros especialistas revisaram os dados disponíveis e alertaram na revista da Associação Médica Americana: "É mandatório conduzir um estudo para avaliar especificamente os riscos e benefícios cardiovasculares desses agentes". Segundo o relato de Topol no sítio da "NEJM"
(content.nejm.org/cgi/reprint/NEJMp048286v1.pdf), tal estudo nunca foi realizado. O recall foi deflagrado com base noutro teste clínico com 2.600 pessoas, projetado para avaliar a eficácia do rofecoxibe contra pólipos no intestino. O estudo constatou, meio por acaso, o risco de problemas cardiovasculares.
"Eu acredito que deve haver uma revisão completa desse caso no Congresso [dos EUA]", conclui Topol em seu artigo. "Infelizmente, está claro para mim que o interesse comercial da Merck nas vendas de rofecoxibe foram além de sua preocupação quanto à potencial toxicidade do remédio ao sistema cardiovascular."
O outro artigo na "NEJM" é de Garret A. FitzGerald, médico da Universidade da Pensilvânia (EUA). O texto não é menos severo que o de Topol: "A história do rofecoxibe também reflete a deficiência do processo de aprovação de remédios. A base racional para levar em conta os efeitos cardiovasculares desses remédios ficou clara nos últimos cinco anos, porém nem mesmo as questões mais fundamentais haviam sido consideradas diretamente".
Em outras palavras: a FDA, tida e havida como infalível, errou. Se até ela falha, por que cargas d'água se espera que brasileiros confiem cegamente em órgãos nativos "puramente técnicos" como a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio dos transgênicos?

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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