|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
Vioxx e a questão da confiança
Marcelo Leite
colunista da Folha
Levante a mão quem nunca tomou
Vioxx. Em família, era piada: quando
um médico não sabia o que receitar, mandava tomar o antiinflamatório, cujo princípio ativo tem nome bem menos charmoso:
rofecoxibe, um dos coxibes, inibidores seletivos de cicloxigenase. Com tantos "x",
não é de estranhar que os luminares do
marketing tenham acomodado dois na
marca da panacéia, mas o fato é que sua
criatividade não foi capaz de dourar o
maior recall de pílulas do planeta.
No final do mês passado, a droga foi retirada do mercado, por aumentar o risco de
problemas cardíacos e derrames. Até aí,
parece normal: um remédio tem efeitos colaterais sérios detectados e sai de cena, por
precaução. Ponto para as autoridades reguladoras, no caso a FDA (agência de alimentos fármacos dos Estados Unidos), e
para o fabricante, a Merck (no Brasil,
Merck Sharp & Dohme).
Não foi bem assim, como está vindo à tona. Havia já vários sinais desses problemas
com o remédio aprovado em maio de 1999
pela FDA, desde então ministrado a 80 milhões de pessoas, gerando vendas anuais
de US$ 2,5 bilhões. Dois relatos acabrunhantes sobre o caso acabam de ser divulgados eletronicamente pela publicação especializada "The New England Journal of
Medicine". (www.nejm.org)
Um dos artigos é do médico Eric J. Topol,
da Cleveland Clinic. O primeiro problema
por ele apontado é que os dados de um estudo com 8.076 pacientes, base da aprovação pela FDA, só viriam a ser publicados
um ano e meio depois numa revista auditada (como a "NEJM", cujos artigos são revisados por consultores independentes). A
primeira reunião para discutir prováveis
efeitos cardiovasculares da droga só seria
convocada pela FDA em fevereiro de 2001,
quase dois anos depois de aprová-la.
Seis meses depois, em agosto de 2001,
Topol e outros especialistas revisaram os
dados disponíveis e alertaram na revista da
Associação Médica Americana: "É mandatório conduzir um estudo para avaliar especificamente os riscos e benefícios cardiovasculares desses agentes". Segundo o
relato de Topol no sítio da "NEJM"
(content.nejm.org/cgi/reprint/NEJMp048286v1.pdf), tal estudo nunca foi realizado. O recall foi deflagrado com base noutro teste clínico com 2.600 pessoas, projetado para avaliar a eficácia do rofecoxibe
contra pólipos no intestino. O estudo constatou, meio por acaso, o risco de problemas cardiovasculares.
"Eu acredito que deve haver uma revisão
completa desse caso no Congresso [dos
EUA]", conclui Topol em seu artigo. "Infelizmente, está claro para mim que o interesse comercial da Merck nas vendas de rofecoxibe foram além de sua preocupação
quanto à potencial toxicidade do remédio
ao sistema cardiovascular."
O outro artigo na "NEJM" é de Garret A.
FitzGerald, médico da Universidade da
Pensilvânia (EUA). O texto não é menos
severo que o de Topol: "A história do rofecoxibe também reflete a deficiência do processo de aprovação de remédios. A base racional para levar em conta os efeitos cardiovasculares desses remédios ficou clara
nos últimos cinco anos, porém nem mesmo as questões mais fundamentais haviam
sido consideradas diretamente".
Em outras palavras: a FDA, tida e havida
como infalível, errou. Se até ela falha, por
que cargas d'água se espera que brasileiros
confiem cegamente em órgãos nativos
"puramente técnicos" como a Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança, a
CTNBio dos transgênicos?
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Repensando o nada: uma deconstrução da matéria Índice
|