São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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+ciência

PESQUISADORA PORTUGUESA NA FRANÇA USA TECNOLOGIAS DE PONTA PARA DAR NOVAS TEXTURAS À NUMISMÁTICA, QUE PESQUISA INFORMAÇÕES ESCONDIDAS NO VIL METAL

VALOR OCULTO

Ricardo Bonalume Neto
enviado especial ao Rio

Por trás de uma moeda de ouro ou de prata podem existir várias histórias. A maneira tradicional de buscá-las é examinando os desenhos da própria moeda -como a efígie do governante ou a data da cunhagem. Essa é a área tradicional da área de estudo conhecida como numismática. Mas é possível hoje enxergar bem mais que isso. Graças à física, o próprio coração da moeda está sendo aberto para estudo -e isso sem danificar o objeto precioso.
Uma das maiores especialistas no estudo de metais nobres é a portuguesa Maria Filomena Guerra, pesquisadora do Centro de Pesquisa e de Restauração dos Museus de França (C2RMF, na abreviação consagrada em francês). O centro tem seus laboratórios instalados em locais invejáveis: no Museu do Louvre, em Paris, e no Palácio de Versalhes.
Cerca de 80 pessoas trabalham no C2RMF. O laboratório surgiu para fazer restauro de obras e hoje, além disso, também serve para estudá-las. A lista de estudos inclui desde a análise de restos de mel e de cera de abelha em cerâmicas do neolítico (a "Idade da Pedra Polida") até a caracterização dos desenhos a ponta de prata de Albrecht Dürer (1471-1528) e dos desenhos a carvão de Gustave Moreau (1826-1898), além da evolução das cores dos quadros de Henri Matisse (1869-1954).
Ela veio ao Rio em março para colaborar com colegas do Museu Histórico Nacional (MHN) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). E mesmo durante essa recente visita-relâmpago, Guerra e suas colegas brasileiras já conseguiram alguns resultados importantes sobre o acervo.
Ao estudar uma moeda de prata da coleção do MHN, da Magna Grécia -colônias gregas no sul da Itália-, descobriram que ela tinha um insólito núcleo de ferro. Isso ajuda a explicar por que a moeda está se deteriorando. Era comum na Antigüidade colocar um núcleo metal mais vil -como cobre ou bronze- em moedas de prata. Mas esse é possivelmente o primeiro caso conhecido no mundo de um coração de ferro em uma moeda preciosa.


São os chamados elementos-traço que permitem identificar a origem do metal de uma determinada moeda, pois são como assinaturas típicas dos minérios encontrados em certos países

"Não esperávamos isso de maneira nenhuma", diz Rejane Lobo Vieira, pesquisadora do Departamento de Numismática do MHN. Em compensação, ao estudar com microscópio eletrônico algumas das primeiras moedas cunhadas no Brasil -pelos holandeses, durante sua ocupação do Nordeste, de 1630 a 1654-, foram observadas minúsculas inclusões de ouro. As partículas provavelmente estavam suspensas no ar da Casa da Moeda e foram parar ali na cunhagem. Depois desses estudos preliminares, poderão ser feitos outros usando aceleradores de partículas para detectar a composição das moedas. Moedas de ouro e prata não são constituídas apenas por esses elementos químicos. Outros metais entram na liga, e existe uma presença variável de outros elementos que aparece em quantidades minúsculas, da ordem de uma parte por milhão. São justamente esses chamados elementos-traço que permitem identificar a origem do metal de uma determinada moeda, pois são típicos dos minérios de diferentes países. Por exemplo, a característica marcante do ouro brasileiro é a presença do elemento-traço paládio. Graças a isso é possível estudar a presença do ouro do Brasil em moedas européias de vários países e de várias épocas. A história há tempos sabe e debate a importância dos metais preciosos para a economia mundial, como a prata do Peru, da Bolívia e do México e o ouro do Brasil. A física pode agora dar a dimensão precisa desse impacto, ao informar quais moedas, de quais épocas, foram cunhadas com esses metais. "Abandonei os bronzes e os cobres. As moedas de ouro e de prata são as mais interessantes. Trabalho quase que só com metais preciosos", diz Guerra, que prefere nem saber o valor do material com o qual trabalha. "Uma vez me disseram, e eu levei um susto." O método de estudo parte de uma mesma técnica básica. Trata-se de bombardear a amostra com um feixe de partículas, geralmente prótons (ou "protões", como diz a pesquisadora portuguesa). Os prótons arrancam elétrons dos átomos da amostra. Os átomos ficam excitados e emitem raios X. Como cada elemento químico tem seu padrão específico de emissão, pode-se então descobrir quais estão presentes. "E também dá para ver a percentagem", diz Guerra. A técnica é conhecida pela sigla em inglês Pixe ("particle induced X-ray emission"). Para fazer análises mais precisas usando técnicas de espectrografia de massa, os cientistas precisam "consumir" um pequeno pedaço da amostra. Obviamente os curadores dos museus não gostam muito dessa análise destrutiva, mesmo levando em conta que, no caso do ouro, bastam dois miligramas (algo como uma cabeça de alfinete). Mas, se a peça está partida e há como aproveitar para raspar um pedacinho antes da restauração, a técnica pode ser usada. Foi o caso do ouro achado em uma escavação arqueológica recente no Reino Unido. Guerra ficou fascinada: pôde analisar o equivalente a "várias cabeças de alfinete" com um colega do Museu Britânico, Michael Cowell.

Ablação a laser
Guerra e colegas aperfeiçoaram uma técnica conhecida pela exótica sigla em inglês LA-ICP-MS ("laser ablation inductively coupled plasma mass spectrometry"). Ela explica: "Baseia-se num espectrômetro de massa onde os íons são separados após ionização da matéria num plasma de argônio. A introdução da amostra é feita por intermédio de uma ablação laser, o que diminui o tamanho da amostragem". Íons são átomos carregados eletricamente.
O uso da "ablação", isto é, a retirada dos íons da amostra com laser, permitiu reduzir a um centésimo o dano à amostra de acordo com a técnica tradicional. O "buraquinho" na superfície do metal não pode ser visto nem com uma lupa.
Ela estudou em detalhe as fontes e rotas de comércio do ouro usado no mundo árabe. O metal precioso vinha por exemplo da África Ocidental, onde hoje estão países como Gana, Mali e Costa do Marfim. "Foi o primeiro ouro explorado pelos portugueses" da Era Moderna, que fundaram a fortaleza de São Jorge da Mina (ou Elmina), a primeira grande edificação européia na África subsaariana. A busca por esse ouro foi levando as caravelas de exploração cada vez mais abaixo pela costa africana. Foi um dos motivos explicadores das grandes navegações portuguesas.
Guerra já havia trabalhado antes com ouro e prata do Brasil. Em um dos estudos, ela analisou as pequenas barras de ouro de oficinas de fundição de locais variados como Cuiabá, Goiás, Sabará e Vila Rica. Foi possível determinar o que diferencia o ouro do país daquele de procedência de outros países do continente.
O ouro brasileiro e seu elemento-traço típico, o paládio, também vai aparecendo com destaque em moedas européias do século 18 em diante. Já a prata cunhada no Brasil vem das antigas colônias espanholas. É bem conhecido da história o contrabando de prata a partir da colônia de Sacramento, entreposto luso no apropriadamente chamado rio da Prata, hoje no Uruguai. A prata das minas bolivianas de Potosi tem um elemento-traço característico, o índio, que a distingue da mexicana.
Não faltam moedas para estudar no Brasil. A coleção de numismática do MHN é a maior da América Latina, com mais de 180 mil peças, entre moedas e medalhas. E ela contém uma moeda de prata raríssima, a única no mundo, conhecida como "índio", pois foi cunhada em Portugal para ser usada no comércio com a Índia.
Ironicamente, foi preciso uma portuguesa trabalhando na França para reunir pesquisadoras brasileiras trabalhando a poucos quilômetros de distância no Rio de Janeiro -as museólogas Eliane Rose Vaz Cabral Nery e Rejane Lobo Vieira, do MHN, e a física Rosa Scorzelli, do CBPF. Ao encontrar as brasileiras em congressos científicos, Guerra as apresentou.
Para estudar a proveniência do metal das moedas do MHN, vai ser preciso agora utilizar um acelerador de partículas. As pesquisadoras estudam ainda onde fazê-lo. Pode ser no Rio, pode ser no síncrotron em Campinas. "O síncrotron permitiria medir os elementos-traço com mais facilidade", diz Nery. Mas, como não se trabalhou ainda com esse tipo de material no país, é preciso ainda adequar os equipamentos. Para uma análise da liga metálica bastam cinco minutos, mas a detecção dos elementos-traço pode exigir de 20 minutos a uma hora.
A desvalorização da moeda -notada pela inclusão de metais menos nobres- reflete a situação político-econômica, por isso dá informação útil aos historiadores.
No caso das moedas holandesas cunhadas em Recife, seria interessante saber agora a origem do metal. A cunhagem teria sido feita com a prata das baixelas dos comandantes, dizem documentos. Já o ouro provavelmente viria da África Ocidental, pois os holandeses haviam tomado São Jorge da Mina aos portugueses.


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