São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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Biologia à cubana

Novo livro dos biólogos Richard Lewontin e Richard Levins ataca o reducionismo reinante na ciência

José Goitia/Associated Press
Pesquisadora trabalha em vacina de meningite desenvolvida pelo Instituto Carlos Finlay, em Cuba


MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Quem quiser encontrará muitas razões para não ler este livro "sui generis" dos biólogos marxistas americanos Richard Lewontin e Richard Levins. Uns tropeçarão no conceito de "biólogo marxista", que tomarão por uma contradição em termos. Outros, escaldados na dialética da natureza de Friedrich Engels, implicarão com o apego quase patético a essa gazua teórica para caracterizar uma visão sistêmica da vida e da ecologia.
Os que se arriscarem a ler, enfim, poderão ser vencidos pela irritante redundância da obra. Os autores a reconhecem, mas ainda se julgam no direito de impingi-la: "A remoção da repetição poderia destruir a coerência de alguns capítulos, e, como a abordagem não é nada familiar, sua repetição em contextos diversos pode não ser fora de propósito".
Após a leitura dos 31 capítulos, há que dar alguma razão ao segundo argumento. A abordagem é mesmo muito pouco convencional. Não só a abordagem. Ninguém decerto esperaria, num livro de biologia, dar com a seguinte dedicatória:
"Cinco cubanos estão agora cumprindo longas sentenças em prisões dos EUA porque estavam monitorando as atividades de grupos terroristas emigrados em Miami. (...) Nós admiramos sua fortaleza e criatividade na resistência e dedicamos este livro a Antonio Guerrero, Fernando González, René González, Gerardo Hernández e Ramón Labañino, e a todas as pessoas no mundo inteiro que lutam por sua libertação".
Se o leitor chegou até aqui, tem estômago para continuar. Não se arrependerá. Lewontin nunca agradou a paladares delicados. Sua longa trajetória de crítico do reducionismo e do determinismo imperantes na biologia molecular já renderam clássicos de difícil digestão, como "Not in Our Genes" ("Não em Nossos Genes", 1985).
Esta nova reunião reedita um ensaio de Lewontin, "O Sonho do Genoma Humano" (1992), crítica precoce das promessas até hoje não cumpridas que brotariam do bilionário projeto. É um dos quatro de sua lavra no volume. Outros 15 têm Levins -ao lado de Lewontin e Stephen Jay Gould- como co-autor.
A primeira parte do volume é a melhor e mais refrescante. Corresponde aos 15 capítulos em co-autoria, colunas publicadas no periódico ecossocialista "Capitalism Nature Socialism". Em textos acessíveis, Lewontin e Levins (L&L) expõem sua visão intermediária da biologia: nem o reducionismo molecular, que consideram "produto específico e crescentemente mercantilizado da indústria capitalista do conhecimento", nem o holismo mistificador, incapaz de reconhecer o valor de desvendar os detalhes de que as coisas são feitas.
No programa para a biologia que apresentam no 15º capítulo, L&L deixam claro, porém, que não se satisfazem com o plano das simples "coisas", foco privilegiado da pesquisa subserviente aos ditames do capital. Para alcançar explicações mais cabais da natureza, a ciência precisa abranger "processos", advogam.
No caso da biologia, isso implica a incorporação da dimensão histórica do objeto, não só por meio da evolução da espécie e do desenvolvimento do organismo, mas também da sua interpenetração dinâmica com o próprio ambiente e até com o universo social.

Dialética da peste
Um dos que se repetem ao longo do livro é o da peste bubônica. Para a biologia tradicional, ela se resume a uma infecção pela bactéria Yersinia pestis, que, reunindo condições favoráveis como roedores (reservatórios) e pulgas (vetores), pode se tornar epidêmica. É o quanto basta para um biólogo moderno iniciar sua pesquisa, pois causas simples rendem mais artigos científicos.
L&L argumentam que esse escopo reduzido jamais permitiria entender por que a peste se tornou uma epidemia na Europa no século 6º e, depois, só no século 14. Roedores, pulgas e bactérias não deixaram de existir naqueles 800 anos. As razões, sustentam, devem ser buscadas no declínio do Império Romano e na crise do feudalismo. Sem essa visada histórico-econômica, o conhecimento persiste incompleto.
O raciocínio vale também para fenômenos atuais. Doenças emergentes, como a hantavirose, só podem ser compreendidas se no radar do pesquisador estiverem também fenômenos como o desmatamento para a agricultura de grãos, que favorece a proliferação de roedores.
A pressão arterial não é uma medida abstrata, indicador fiel do estado de qualquer paciente. Naqueles submetidos a estresse permanente, por razões socioeconômicas, a pressão alta pode ser sintoma de doença crônica, e não de uma crise controlável por medicamentos.
A pobreza modula a norma das reações do organismo ao ambiente, tornando-a muito diversa daquela de quem teve uma vida melhor, mesmo que ambos partilhem os mesmo genes. Mas, quando se fala em medicina personalizada, só os genes entram em cena.
O livro oferece um manancial de reflexões que obrigam a pensar. Se traz de permeio um tanto de jargão marxista e até de propaganda cubana, tanto melhor como antídoto: de propaganda corporativa e jargão determinista, afinal, a literatura biológica já está até as tampas.

LIVRO - "Biology Under the Influence - Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health" Richard Lewontin e Richard Levins; Monthly Review Press, 400 págs., US$ 22,95


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