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Marcelo Gleiser
Inteligência seletiva
Talvez o segredo
da longevidade dos dinossauros seja a sua estupidez
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Uma das confusões mais comuns quando se discute o processo de seleção natural proposto por Charles Darwin é a afirmação de que a evolução das espécies
marcha em direção à complexidade
crescente, isto é, que a vida tende a
criar animais cada vez mais complexos, como se tivesse um plano. O perigo de tal afirmação é -fora o fato de estar definitivamente errada- que ela
põe o ser humano no ápice da criação:
nós como objetivo final da vida. Nada
mais conveniente para alimentar o
discurso dos criacionistas, que diriam
que, como a complexificação da vida
leva invariavelmente aos humanos,
não há dúvida de que somos mesmo a
imagem de Deus.
Pensemos nos dinossauros. Os primeiros surgiram no Período Triássico,
há 230 milhões de anos. Pelo menos
esses são os fósseis mais antigos, aliás
achados no Brasil e Argentina. Dada a
sofisticação de seus esqueletos, muito
provavelmente seus primos reptilianos já existiam bem antes disso.
É sempre bom lembrar que o registro fóssil é necessariamente incompleto, já que é impossível recuperar
todas as espécies que viveram há centenas de milhões de anos. De qualquer
forma, lá estavam eles, dominando a
cadeia alimentar por dezenas de milhões de anos. Os últimos dinossauros
são encontrados há 65 milhões de
anos, a data da gigantesca colisão de
asteróide que selou o destino dos
grandes répteis e de mais de 40% da
vida na Terra. Arredondando, para
simplificar, se os dinossauros surgiram há 250 milhões de anos e sumiram há 50 milhões, viveram por mais
ou menos 200 milhões anos. Nada
mau, comparado ao nosso 1 milhão.
Se os dinossauros sobreviveram por
tanto tempo, podemos supor duas coisas: ou eram muito mais inteligentes
do que imaginamos ou inteligência
não é necessariamente o caminho da
seleção natural. Em outras palavras, a
vida não leva necessariamente à inteligência. Examinemos a primeira hipótese, a de que os dinossauros talvez fossem brilhantes e, por isso, sobreviveram por tanto tempo. Análises dos
fósseis de dinossauros demonstram
que não eram particularmente inteligentes. Suas caixas cranianas eram
pequenas comparadas ao seu tamanho, e não há evidência de córtex
frontal avantajado. Também não são
encontrados artefatos junto aos ossos
petrificados. A conclusão é que não
eram mais inteligentes do que uma
sucuri ou um jacaré.
A longa existência dos dinossauros
e a ausência de qualquer indicação de
que tivessem inteligência superior demonstra que a vida não tem um plano
que leva necessariamente à inteligência. De fato, a seleção natural não tem
nenhum plano. Ela é completamente
acidental, levando simplesmente à
preponderância das espécies que têm
maior facilidade de sobreviver em determinadas condições. Quando essas
condições mudam, espécies que antes
estavam bem adaptadas podem desaparecer. Por exemplo, se a temperatura do planeta cair rapidamente, animais de sangue frio, como os répteis,
terão dificuldade de sobreviver. Caso
a temperatura aumente drasticamente, serão os animais peludos e de sangue quente que sofrerão mais.
Sempre fico angustiado quando vejo um São
Bernardo na praia de Ipanema em
pleno verão.
Se estamos aqui há menos de um
milhão de anos, temos um grande desafio pela frente. Dado o que já fizemos com o nosso planeta, não é óbvio que iremos sobreviver por tanto tempo quanto os dinossauros. Se a inteligência leva ao domínio sobre as outras espécies e a um maior controle sobre
as flutuações climáticas, ela cria novas
ameaças. Talvez o segredo da longevidade dos dinossauros seja justamente
a sua estupidez.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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