São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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Marcelo Gleiser

Inteligência seletiva


Talvez o segredo da longevidade dos dinossauros seja a sua estupidez

Uma das confusões mais comuns quando se discute o processo de seleção natural proposto por Charles Darwin é a afirmação de que a evolução das espécies marcha em direção à complexidade crescente, isto é, que a vida tende a criar animais cada vez mais complexos, como se tivesse um plano. O perigo de tal afirmação é -fora o fato de estar definitivamente errada- que ela põe o ser humano no ápice da criação: nós como objetivo final da vida. Nada mais conveniente para alimentar o discurso dos criacionistas, que diriam que, como a complexificação da vida leva invariavelmente aos humanos, não há dúvida de que somos mesmo a imagem de Deus.
Pensemos nos dinossauros. Os primeiros surgiram no Período Triássico, há 230 milhões de anos. Pelo menos esses são os fósseis mais antigos, aliás achados no Brasil e Argentina. Dada a sofisticação de seus esqueletos, muito provavelmente seus primos reptilianos já existiam bem antes disso.
É sempre bom lembrar que o registro fóssil é necessariamente incompleto, já que é impossível recuperar todas as espécies que viveram há centenas de milhões de anos. De qualquer forma, lá estavam eles, dominando a cadeia alimentar por dezenas de milhões de anos. Os últimos dinossauros são encontrados há 65 milhões de anos, a data da gigantesca colisão de asteróide que selou o destino dos grandes répteis e de mais de 40% da vida na Terra. Arredondando, para simplificar, se os dinossauros surgiram há 250 milhões de anos e sumiram há 50 milhões, viveram por mais ou menos 200 milhões anos. Nada mau, comparado ao nosso 1 milhão.
Se os dinossauros sobreviveram por tanto tempo, podemos supor duas coisas: ou eram muito mais inteligentes do que imaginamos ou inteligência não é necessariamente o caminho da seleção natural. Em outras palavras, a vida não leva necessariamente à inteligência. Examinemos a primeira hipótese, a de que os dinossauros talvez fossem brilhantes e, por isso, sobreviveram por tanto tempo. Análises dos fósseis de dinossauros demonstram que não eram particularmente inteligentes. Suas caixas cranianas eram pequenas comparadas ao seu tamanho, e não há evidência de córtex frontal avantajado. Também não são encontrados artefatos junto aos ossos petrificados. A conclusão é que não eram mais inteligentes do que uma sucuri ou um jacaré.
A longa existência dos dinossauros e a ausência de qualquer indicação de que tivessem inteligência superior demonstra que a vida não tem um plano que leva necessariamente à inteligência. De fato, a seleção natural não tem nenhum plano. Ela é completamente acidental, levando simplesmente à preponderância das espécies que têm maior facilidade de sobreviver em determinadas condições. Quando essas condições mudam, espécies que antes estavam bem adaptadas podem desaparecer. Por exemplo, se a temperatura do planeta cair rapidamente, animais de sangue frio, como os répteis, terão dificuldade de sobreviver. Caso a temperatura aumente drasticamente, serão os animais peludos e de sangue quente que sofrerão mais.
Sempre fico angustiado quando vejo um São Bernardo na praia de Ipanema em pleno verão.
Se estamos aqui há menos de um milhão de anos, temos um grande desafio pela frente. Dado o que já fizemos com o nosso planeta, não é óbvio que iremos sobreviver por tanto tempo quanto os dinossauros. Se a inteligência leva ao domínio sobre as outras espécies e a um maior controle sobre as flutuações climáticas, ela cria novas ameaças. Talvez o segredo da longevidade dos dinossauros seja justamente a sua estupidez.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

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