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Marcelo Leite
Enfim, BR-163
Bastou o anúncio
da intenção de asfaltar a estrada de chão aberta na década de 1970 para desencadear um processo intenso de grilagem e desmatamento
Uma das mais arrastadas novelas
ambientais da Amazônia brasileira parece ter chegado a um final razoavelmente feliz cinco dias atrás, com a
conclusão do licenciamento para asfaltar a estrada BR-163, a Cuiabá-Santarém. Assim como madeireiros, sojicultores e agricultores do local, o presidente Lula comemorou, de olho em
centenas de milhares de votos amazônicos. Há razão também para o país todo comemorar, com alguma cautela.
Não pelo asfalto em si, que deve levar alguns anos ainda para cobrir os
cerca de 900 quilômetros a pavimentar na maior porção de floresta intacta
que sobrava no sul do Pará, a um custo
de R$ 1,1 bilhão. A história mostra que
estradas pavimentadas induzem desmatamento de uma faixa de 30 quilômetros a 50 quilômetros ao longo das
rodovias, por facilitar o acesso de madeireiros e grileiros.
Bastou o anúncio da intenção de asfaltar a estrada de chão aberta na década de 1970 para desencadear um processo intenso de grilagem e desmatamento, que chegou a bater recordes na
região. Nomes de lugares como Novo
Progresso e Castelo de Sonhos viraram sinônimos de devastação ambiental e conflitos agrários. Era o pior dos
mundos: a destruição prevista com a
pavimentação, mas sem o asfalto propriamente dito, que nunca chegava.
Na linha de frente de questionamento estavam associações de agricultores e ONGs socioambientais, como a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Essas forças se reuniram num fórum regional que lutava não contra a pavimentação, que também vai beneficiar
os pequenos proprietários, mas por
um inédito planejamento participativo capaz de ordenar a ocupação do solo e brecar o caos característico das
fronteiras agrícolas. Asfalto, sim, mas
com zoneamento ecológico e desenvolvimento socioeconômico.
Já na administração da ministra
Marina Silva, o governo federal encampou a organização de base e patrocinou o Plano BR-163 Sustentável.
Participação e planejamento dignos
do nome, no entanto, tomam tempo.
Enquanto ele passava, a soja caía de
preço no mercado internacional e,
com ele, despencava o entusiasmo dos
sojicultores com investimento em infra-estrutura (a BR-163 pavimentada
facilitaria o transporte até Santarém,
de onde a commodity seguiria em barcaças para Belém e daí para a Europa,
com grande economia de custos). Em
agosto de 2005, o consórcio privado
que bancaria a obra desistiu de fazê-lo.
Foi um ano difícil na região. O assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang, em fevereiro, tinha desencadeado uma série de medidas de
preservação em preparo pelo governo
federal. Entre elas, a criação de gigantescas unidades de conservação na
chamada Terra do Meio e a interdição
de outras grandes áreas a oeste da BR-163. A Operação Curupira desmantelou quadrilhas que fraudavam autorizações para derrubada de árvores. Em
represália, madeireiros chegaram a fechar a estrada por vários dias.
As coisas agora parecem mais calmas. Existe um plano para a região e a
disposição do governo para enfim asfaltar a Cuiabá-Santarém, com mobilização de batalhões de engenharia de
construção do Exército e de PPPs
(parcerias público-privadas). É bom
ficar de olho, pois do sucesso desse experimento depende o futuro da noção
de que estradas não são sinônimos de
destruição para a Amazônia.
Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp,
autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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