|
Texto Anterior | Índice
Quatro dias no arco da tragédia
DO ENVIADO À AMAZÔNIA
Quem foi tu?", entoa
o ornitólogo Mario
Cohn-Haft ao ouvir o canto de um
pássaro logo antes
de embarcar em um pequeno
avião no aeroporto de Marabá,
no sudeste do Pará. A ave, em
uma árvore ao lado, é um anu-branco. "Esse pássaro é natural
do cerrado, mas com o desmatamento começou a entrar em
áreas de bioma amazônico",
explica o pesquisador do Inpa
(Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Cohn-Haft embarcou no pequeno avião Bandeirante do
Inpe (Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais), que sobrevoaria entre os dias 2 e 6 de
junho toda a extensão do chamado arco do desmatamento, a
região formada pelas florestas
de Rondônia, matas de transição de Mato Grosso e Tocantins, além do sudeste do Pará.
O canto do anu-branco foi o
prenúncio daquilo que os passageiros e a reportagem da Folha estavam por ver naquele
dia, voando no nordeste mato-grossense e no Tocantins: pasto
e mais pasto onde antes havia
matas de transição, entre a
Amazônia e o cerrado.
O objetivo do Inpe com o vôo
era fazer videografias -filmagens contínuas de algumas rotas na região, que depois podem ser usadas para comparação com as imagens de satélite.
Ao emparelhar os dois dados,
os pesquisadores podem tirar
dúvidas sobre informações que
parecem ambíguas. Vista de
longe, uma área de cerrado pode se parecer com floresta desmatada, mas o sobrevôo oferece o tira-teima.
"A câmera do avião capta detalhes de 1 metro, em média,
enquanto os satélites disponíveis registram apenas seções de
imagem com mais de 30 metros", explica Carlos Alberto
Steffen, do Inpe, antes do pouso em Palmas, no Tocantins.
No sobrevôo do dia seguinte,
o avião cruza o rio Araguaia para revelar algumas áreas de
transição preservadas e mais
pasto. Pesquisadores do Museu
Paraense Emílio Goeldi estão
de olho nessa região, para identificar áreas de interesse para a
conservação de biodiversidade
que estão fora de proteção oficial -antes que o trator chegue
até elas. Em algumas áreas de
mata, clareiras de desmatamento parecem surgir sem conexão com atividade humana,
mas logo as pastagens surgem e
se fundem com a BR-158, estrada que trilhou a entrada da pecuária na região.
Só no terceiro dia de vôo a
paisagem se torna um pouco
mais agradável aos olhos, com o
avião cruzando o Parque Indígena do Xingu. A área tem vasta
extensão de mata preservada,
tudo isso perigosamente perto
da BR-158 -cuja conclusão do
asfaltamento, sob critérios que
receberam críticas de ambientalistas, é meta do governo.
Quando todos já estão acostumados ao verde-escuro da
floresta, porém, mais clareiras
isoladas começam a surgir.
Desta vez as áreas são maiores e
guardam as marcas do cultivo
da soja. Durante um breve pouso para abastecimento na cidade de Sinop, no centro-norte do
Mato Grosso, mais um anu-branco canta para os visitantes.
Em algumas poucas áreas
abertas, ainda sem cultivo, listras escuras revelam as chamadas leiras, restos de madeira
cortada depositados em fileiras
pelo terreno desmatado. Secando ao sol, aguardam agosto,
mês de início das queimadas.
No sobrevôo até Vilhena, sul
de Rondônia, alguns trechos de
mata preservada logo terminam com o pouso em uma cidade que, em meio a pastos e lavouras, mais parece uma vila do
Sudeste do que uma cidade
amazônica. Caminhonetes e
restaurantes exibem adesivos
de uma campanha publicitária
institucional: "Você já comeu
hoje? Agradeça ao agricultor".
Almeida, do Inpe, estranha o
céu limpo na cidade. "Em setembro passado, a cidade estava coberta de fumaça."
No último de dia de sobrevôo
acompanhado pela Folha, um
pouco mais de verde-escuro.
Um sobrevôo sobre terras indígenas em torno do rio Aripuanã encanta os pesquisadores.
Cohn-Haft tira fotos em busca de áreas que mereçam uma
visita em terra. Formações de
vegetação diferenciadas perdidas no meio da imensidão podem ser o lar de muitas espécies desconhecidas.
Ao sobrevoar o rio Juruena,
mais a leste, alguns dos passageiros já sabiam que ele era a
notícia do dia. Naquela tarde de
5 de maio, dia do Meio Ambiente, aquela região era declarada área de preservação ambiental pelo governo federal.
À tarde, um pouso em Porto
Velho, a capital rondoniense,
encerrava a viagem para alguns
dos passageiros. No ar, ao lado
do hotel, fumaça e cheiro de
mato queimado. "Deve ser um
terreno baldio queimando",
conclui o jornalista, avisado de
que a estação de queimadas
ainda não havia começado.
"Não", diz o piloto. "É queimada mesmo. Nós vimos na hora
do pouso." O progresso da
agropecuária, pelo visto, não
tem calendário fixo. (RG)
Texto Anterior: Vida após a morte Índice
|