São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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Quatro dias no arco da tragédia

DO ENVIADO À AMAZÔNIA

Quem foi tu?", entoa o ornitólogo Mario Cohn-Haft ao ouvir o canto de um pássaro logo antes de embarcar em um pequeno avião no aeroporto de Marabá, no sudeste do Pará. A ave, em uma árvore ao lado, é um anu-branco. "Esse pássaro é natural do cerrado, mas com o desmatamento começou a entrar em áreas de bioma amazônico", explica o pesquisador do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Cohn-Haft embarcou no pequeno avião Bandeirante do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que sobrevoaria entre os dias 2 e 6 de junho toda a extensão do chamado arco do desmatamento, a região formada pelas florestas de Rondônia, matas de transição de Mato Grosso e Tocantins, além do sudeste do Pará.
O canto do anu-branco foi o prenúncio daquilo que os passageiros e a reportagem da Folha estavam por ver naquele dia, voando no nordeste mato-grossense e no Tocantins: pasto e mais pasto onde antes havia matas de transição, entre a Amazônia e o cerrado.
O objetivo do Inpe com o vôo era fazer videografias -filmagens contínuas de algumas rotas na região, que depois podem ser usadas para comparação com as imagens de satélite. Ao emparelhar os dois dados, os pesquisadores podem tirar dúvidas sobre informações que parecem ambíguas. Vista de longe, uma área de cerrado pode se parecer com floresta desmatada, mas o sobrevôo oferece o tira-teima.
"A câmera do avião capta detalhes de 1 metro, em média, enquanto os satélites disponíveis registram apenas seções de imagem com mais de 30 metros", explica Carlos Alberto Steffen, do Inpe, antes do pouso em Palmas, no Tocantins.
No sobrevôo do dia seguinte, o avião cruza o rio Araguaia para revelar algumas áreas de transição preservadas e mais pasto. Pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi estão de olho nessa região, para identificar áreas de interesse para a conservação de biodiversidade que estão fora de proteção oficial -antes que o trator chegue até elas. Em algumas áreas de mata, clareiras de desmatamento parecem surgir sem conexão com atividade humana, mas logo as pastagens surgem e se fundem com a BR-158, estrada que trilhou a entrada da pecuária na região.
Só no terceiro dia de vôo a paisagem se torna um pouco mais agradável aos olhos, com o avião cruzando o Parque Indígena do Xingu. A área tem vasta extensão de mata preservada, tudo isso perigosamente perto da BR-158 -cuja conclusão do asfaltamento, sob critérios que receberam críticas de ambientalistas, é meta do governo.
Quando todos já estão acostumados ao verde-escuro da floresta, porém, mais clareiras isoladas começam a surgir. Desta vez as áreas são maiores e guardam as marcas do cultivo da soja. Durante um breve pouso para abastecimento na cidade de Sinop, no centro-norte do Mato Grosso, mais um anu-branco canta para os visitantes.
Em algumas poucas áreas abertas, ainda sem cultivo, listras escuras revelam as chamadas leiras, restos de madeira cortada depositados em fileiras pelo terreno desmatado. Secando ao sol, aguardam agosto, mês de início das queimadas.
No sobrevôo até Vilhena, sul de Rondônia, alguns trechos de mata preservada logo terminam com o pouso em uma cidade que, em meio a pastos e lavouras, mais parece uma vila do Sudeste do que uma cidade amazônica. Caminhonetes e restaurantes exibem adesivos de uma campanha publicitária institucional: "Você já comeu hoje? Agradeça ao agricultor".
Almeida, do Inpe, estranha o céu limpo na cidade. "Em setembro passado, a cidade estava coberta de fumaça."
No último de dia de sobrevôo acompanhado pela Folha, um pouco mais de verde-escuro. Um sobrevôo sobre terras indígenas em torno do rio Aripuanã encanta os pesquisadores.
Cohn-Haft tira fotos em busca de áreas que mereçam uma visita em terra. Formações de vegetação diferenciadas perdidas no meio da imensidão podem ser o lar de muitas espécies desconhecidas.
Ao sobrevoar o rio Juruena, mais a leste, alguns dos passageiros já sabiam que ele era a notícia do dia. Naquela tarde de 5 de maio, dia do Meio Ambiente, aquela região era declarada área de preservação ambiental pelo governo federal.
À tarde, um pouso em Porto Velho, a capital rondoniense, encerrava a viagem para alguns dos passageiros. No ar, ao lado do hotel, fumaça e cheiro de mato queimado. "Deve ser um terreno baldio queimando", conclui o jornalista, avisado de que a estação de queimadas ainda não havia começado. "Não", diz o piloto. "É queimada mesmo. Nós vimos na hora do pouso." O progresso da agropecuária, pelo visto, não tem calendário fixo. (RG)


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