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MICRO/MACRO
Do ponto à loucura
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
O ponto não existe. Apenas a
idéia dele, que, na verdade, é
apenas uma das várias abstrações que fazem parte da estrutura conceitual da geometria. Por
não ter dimensão, o ponto não
ocupa lugar no espaço e, paradoxalmente, é a entidade fundamental da geometria, a área da
matemática que estuda as propriedades de objetos no espaço.
Como sabemos, a menor distância entre dois pontos, pelo
menos no plano, é um segmento
de reta. Mas uma reta, por definição, não tem espessura, pois,
se tivesse, ela seria um retângulo
bem comprido -um objeto em
duas dimensões- e não uma linha. A conclusão é simples: a reta, que não existe por não ter espessura, liga dois pontos que
também não existem! Essa conclusão é apenas aparente; ao
transformar uma idealização em
realidade, somos necessariamente levados a comprometer a
"pureza" da idéia.
O grande filósofo grego Platão,
que viveu aproximadamente de
428 a.C. a 348 a.C., via o mundo
dos sentidos com grande suspeita. Para ele, a representação de
um círculo jamais será tão perfeita quando a idéia do círculo
que habita a mente. Quando o
leitor imagina um círculo, imediatamente um círculo perfeito
aparece em algum lugar de sua
mente. Já quando o leitor desenha esse círculo, ou seja, quando
tenta representar essa idealização concretamente em um pedaço de papel, a perfeição vai
embora. Por mais perfeito que
seja o desenho, o compasso ou a
impressora a laser, o desenho de
um círculo jamais será perfeito
como a idéia de um círculo. Só
há perfeição das figuras geométricas no mundo das idéias.
Platão ilustrou sua filosofia
com a "alegoria da caverna".
Imagine, disse ele, vários escravos em uma caverna, acorrentados de forma a poder olhar apenas para a parede à sua frente. (A
"democracia" grega não só aceitava a escravidão, como excluía
os escravos da participação política.) Atrás dos escravos, filósofos da Academia de Platão preparavam uma fogueira e manipulavam objetos, cujas sombras
eram projetadas na parede vista
pelos escravos. Os filósofos pediam aos escravos para descrever imagens projetadas na parede. (Adaptação livre da idéia de
Platão.)
O ponto crucial do argumento
é que os objetos, cujas sombras
eram projetadas, eram figuras
geométricas "perfeitas", como o
círculo ou o quadrado. No entanto, tudo o que os escravos
viam eram sombras imperfeitas,
distorções dos objetos originais.
A conclusão de Platão é que o
mundo dos sentidos não reproduz a perfeição do mundo das
idéias, apenas se aproxima dela.
Ao tentarmos reproduzir,
através de construções geométricas e equações matemáticas, a
realidade do mundo natural, estaremos sempre no papel dos escravos, conscientes das perfeições abstratas e das imperfeições
concretas. Nossa percepção sensorial do mundo será sempre limitada, e nossa representação
também. O curioso é que o
mundo que "está lá fora" é representado "aqui dentro", ou seja, dentro de nossas mentes. Temos duas realidades coexistindo
dentro de nossas mentes: uma
realidade abstrata, relacionada
com o mundo das idéias, construída de "dentro para fora", e
uma realidade concreta, construída de "fora para dentro".
Em uma mente sadia, essas
duas realidades coexistem e se
complementam, uma inspirando e reforçando a existência da
outra. Quando essas duas realidades entram em choque, as
fronteiras do que é real e do que
é imaginado se confundem. Coisas que pertencem ao mundo
das idéias se tornam "reais" e
coisas "reais" se transformam
em idealizações. Às vezes, esse
tipo de efeito é obtido com certas
drogas ou em certos tipos de patologias mentais. O que me lembra o personagem do conto "O
Alef", de Jorge Luis Borges, que
podia vislumbrar todo o Universo, o passado e o futuro, de um
ponto em seu sótão. Talvez o
enigma do infinito esteja mesmo
escondido por trás da aparente
simplicidade do ponto.
Marcelo Gleiser é físico teórico do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor
do livro "Retalhos Cósmicos".
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