São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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+ Marcelo Leite

Males da escravidão


Moléstias importadas da África são hoje doenças esquecidas de miseráveis


Pode-se debater indefinidamente se a escravidão deixou ou não marcas profundas no comportamento dos brasileiros, tornando-nos ou não racistas -mais ou menos cordiais, vá lá. Mas ninguém será capaz de negar, nem mesmo torturando estatísticas, que um de seus legados se encontra na saúde pública: moléstias importadas da África em navios negreiros, hoje doenças esquecidas de miseráveis.
São três os principais males parasitários herdados da escravidão: esquistossomose, oncocercose e filariose linfática. Todas elas causadas por vermes e de uma maneira ou outra associadas com água, vale dizer, com falta de saneamento básico. Mesmo aqueles convencidos de que não discriminamos negros, só os pobres, concordarão que sua sobrevivência representa uma vergonha. A primeira delas, a esquistossomose, é talvez a mais conhecida do público. O responsável no Brasil responde pelo nome de Schistosoma mansoni, verme que penetra pela pele, alcança vasos sangüíneos e por eles pode chegar a pulmões, coração, fígado e intestinos. Nas formas graves, ocasiona o "barrigão" característico.
O esquistossoma ainda está presente em 19 Estados, um século depois de ter sido apontado pelo médico Manuel Pirajá da Silva (1873-1961), em 1907 ou 1908, na Bahia, como responsável pela doença. A prevenção exige tão-somente evitar contato com água na qual estiver presente o caramujo transmissor.
A oncocercose, também chamada de cegueira fluvial ou mal de garimpeiro, tem muito menos casos e notoriedade no país. O verme Onchocerca volvulus é transmitido de pessoa a pessoa por piuns e borrachudos do gênero Simulium. Reproduz-se produzindo multidões de larvas que se espalham pelo corpo e podem chegar aos olhos. Segundo o Ministério da Saúde, a oncocercose está restrita às áreas do índios ianomâmis em Roraima. Tratamento sistemático iniciado nos anos 1990 teria conduzido a algo próximo da erradicação, mas ninguém sabe o que pode acontecer depois do caos que se instalou na área de saúde indígena com a desarticulação de convênios entre a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e ONGs como a Urihi.
Por fim, a filariose linfática se origina com o verme Wuchereria bancrofti, transmitida pelo pernilongo Culex quinquefasciatus. Sua manifestação mais conhecida é a elefantíase, inchaço descomunal de membros que resulta em algumas das imagens mais grotescas exibidas em aulas sobre doenças tropicais. A filariose vem sendo combatida no Brasil desde a década de 1950, mas ainda resiste. Seu reduto mais significativo, o único em que se considera existir transmissão do verme de pessoa a pessoa, está em uma das principais regiões metropolitanas do país, a de Recife.
Não deixa de ser irônico que essa pavorosa doença herdada da escravidão sobreviva logo na terra de Gilberto Freyre, inspirador maior de quem nega a existência de racismo no Brasil. É só uma coincidência. Mais uma vez, miséria e falta de saneamento básico são as verdadeiras causas. Nada a ver com o fato de gerações de sinhozinhos de engenho pernambucanos terem enriquecido à custa de escravos.
Coincidência por coincidência, por que não engendrar uma, mais benigna? Em 2008 comemoram-se 120 anos do fim da escravidão. Seria uma boa data para adotar como meta a erradicação da esquistossomose, da oncocercose e da filariose até 2014, quando descendentes de escravos estarão brilhando na final da Copa no Maracanã -se nada mais der errado.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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