São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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Ciência em Dia

Malditas estatísticas, benditas estatísticas

Marcelo Leite
editor de Ciência

Talvez nunca se venha a saber se o escritor americano Mark Twain (1835-1910) esteve certo ao atribuir ao estadista britânico Benjamin Disraeli (1804-1881) a famosa frase sobre os três tipos de falsidades voluntárias: mentiras, malditas mentiras e estatísticas ("lies, damned lies, and statistics"). Mas também é verdade -maldita verdade?- que a citação mais comum na imprensa britânica já não diz o que pretendia dizer, na origem. Hoje em dia, nada ganha mais ares de verdade do que um amontoado de números e tabelas.
Jornalistas que o digam. Acossados pelo imperativo cada vez mais escorregadio da objetividade, os profissionais do efêmero se aferram a estatísticas como desesperados e pecadores tentam amparar-se na corda do Círio de Nazaré.
O caminho das pedras até o manancial das manchetes já foi encontrado, entre outros, por um IBGE profissionalizado. O instituto desmembrou o Censo de 2001 numa infinidade de relatórios -tática conhecida no meio acadêmico como "salame", em que teses e dissertações são fatiadas numa série de artigos.
Assim como Disraeli pode ser como não ser o "sábio estadista" citado pelo economista e político Leonard Henry Courtney (1832-1918) em palestra de 1895 nos EUA, presenciada por Mark Twain, será difícil descobrir quem de fato começou a usar estatísticas para fisgar jornalistas. Caso não tenham sido os primeiros, militantes verdes certamente se encontram entre os pioneiros.
A tradição de sensibilizar consciências com números alarmantes é tão estabelecida que já engendrou uma variante reacionária, na pessoa de Bjorn Lomborg (www.lomborg.com). Ele é o autor do muito falado e pouco lido "O Ambientalista Cético" (Editora Campus, 560 págs. R$ 99,00), livro que o transformou em celebridade. Pode-se dizer o que for dele e do catatau que escreveu, menos que tenham sido desleais na escolha do campo em que empreendem sua cruzada contra o alarmismo ambientalista.
O problema para Lomborg é que ele parece estar literalmente pregando no deserto. As estatísticas da degradação encontram tanta acolhida entre cidadãos e leitores não porque eles são crédulos ou impressionáveis (muitos decerto são), mas porque as pessoas vivenciam a degradação ao longo da própria biografia. Quem conheceu Ubatuba nos anos 60, Arembepe nos 70 ou Mangue Seco nos 80 sabe do que se trata -para não falar da avenida Paulista, que há quatro décadas ainda tinha ipês plantados dos dois lados do leito de paralelepípedos.
Foi também nos anos 60 que Gagarin entrou em órbita e o mundo ganhou uma perspectiva global, como Planeta Azul. Desde então não pararam de aparecer estatísticas dando conta das dificuldades que a espécie humana lhe impinge. Exemplos recentes, tirados da revista "World Watch" (www.wwiuma.org.br, no Brasil) de janeiro/fevereiro:
- Em 1960, havia 100 mil rinocerontes negros na África, e hoje são 2.500;
- Cerca de 440 mil pedaços arrancados de recifes de coral são vendidos por ano no mundo, 350 mil dos quais comprados por norte-americanos;
- A Noruega tem 4 milhões de pessoas, mas um único de seus barcos pode capturar 120 milhões de peixes num ano;
- São necessários mil anos para formar uma polegada (2,54 cm) de solo, mas os EUA perderam um terço da camada de solo fértil nos últimos 40 anos;
- Cabem dois aviões Boeing-747 (Jumbo) num estádio e 12 em algumas das maiores redes usadas em pesca oceânica.
Benditas estatísticas.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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