São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Periscópio

A doença de Darwin

José Reis
especial para a Folha

A vida de Darwin, como se sabe, foi um contínuo sofrimento, excluído talvez o tempo que passou em sua excursão. Nenhum biólogo mereceu tantos escritos e livros quanto ele, alguns especificamente sobre sua doença. Sua vida decorreu normal até a partida do "Beagle", embora pouco antes disso se tenha queixado de dores no estômago e no peito, que ele atribuía a mal cardíaco. Por isso não procurou médico, temeroso de que o diagnóstico acabasse por frustrar seu embarque e a viagem que tanto desejava empreender. Durante o período que passou na expectativa da partida teve diversos acessos de ansiedade.
Quase esqueceu tudo isso durante a expedição. Cerca de dois anos após o desembarque, algumas semanas antes de atingir os 30 anos, várias vezes se queixou de não estar passando bem do estômago. Onze meses após o casamento e três dias antes do nascimento do primeiro filho, entrou em depressão, sem ânimo para trabalhar. Nessa época, teve diversos ataques de vômito. Vivia desanimado com a idéia de ter de passar assim o resto da vida, como inválido. Isso na verdade não ocorreu, como prova a obra que deixou. Nem a mudança de ares lhe melhorou a saúde. O anúncio da chegada de algum conhecido científico despertava crise de ansiedade, com tremores violentos e acessos de vômito. Tornou-se indiferente e incapaz de se afeiçoar profundamente a qualquer pessoa.
Esse quadro prevaleceu até os 60 anos, melhorando seu estado de saúde até a morte, aos 73. Consultou vários especialistas quando doente, porém nenhum deles achou sinal de doença orgânica. Não poucos autores tentaram, pela análise retrospectiva dos sintomas, explicar a doença. Causou muita sensação, quando publicado, o diagnóstico do parasitologista israelense Saul Adler, apoiado por Peter Medawar (Prêmio Nobel), de que Darwin sofreu do mal de Chagas. Mas é difícil aceitar essa hipótese, porque Darwin já manifestara sinais de doença antes de deixar a Inglaterra. Para outros, Darwin não passava de um hipocondríaco que "criava" suas aflições. Outros ainda, de quem Medawar fazia pouco, tentavam explicar tudo pela psicanálise.
A mais recente biografia de Darwin ("Charles Darwin: a new Biography", Hutchinson) foi de fato escrita por um psiquiatra e psicanalista de grande renome, John Bowlby, que chegou a uma explicação complexa, que começa com a prematura perda da mãe aos 5 anos, fato que Darwin nunca lamentou, e as más relações que ele tinha com o pai na infância e juventude. Tudo isso o tornava muito sensível à doença e à morte dos membros da família, assim como às críticas dos colegas mais idosos às relações com o pai. Bowlby insiste nos distúrbios que a orfandade acarreta.
Ao tentar explicar os sintomas isolados de Darwin, o biógrafo se apega às especulações de Douglas Hubble e George Pickering, e com eles engloba aqueles sintomas tão variados numa síndrome que chama de hiperventilação.
A excitação de vários tipos, inclusive a ansiedade, pode acelerar e aprofundar a respiração, o que causa excesso de perda de dióxido de carbono. Isso provoca alcalinização do sangue (alcalose respiratória) que acarreta tensão, desmaio, tontura, palpitações, perturbações visuais, dores no peito etc., sintomas de que Darwin se queixava. Os sintomas, especialmente os de origem mental, são acompanhados de preocupações e pensamentos sombrios, que pioram a ansiedade e aceleram a respiração, recomeçando o ciclo.
Comentando em "New Scientist" o diagnóstico de Bowlby, um outro psiquiatra, Morton Schatzman, acha que ele está correto, porém não sabe como enquadrar na síndrome os acessos de vômito. A biografia escrita por Bowlby, em livro de mais de 500 páginas e muito bem documentada, difere de muitos outros ensaios do mesmo gênero sobre Darwin por se ocupar menos de sua aventura como naturalista do que com sua vida pessoal e em particular com a doença que o permeou e atormentou por tanto tempo.


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