São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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+ ciência

Erupção do Vesúvio há 3.800 anos foi pior que a de Pompéia e sugere risco sério para Nápoles

A caminho das cinzas

PNAS/Divulgação
Pegadas de fugitivos da catástrofe da Idade do Bronze


REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

A vida continuava no mesmo passo de sempre nas briguentas cidades-Estado da Mesopotâmia ou nos palácios cheios de afrescos de Creta. Não há sinais de que alguém por lá tenha percebido o apocalipse que se abateu do em outra parte do mar hoje conhecido como Mediterrâneo, sobre a região atualmente ocupada pela cidade de Nápoles. Mas os milhares de habitantes daquela área provavelmente acharam que o céu estava caindo sobre suas cabeças.
E, pelo visto, o "céu" era formado por pedacinhos de rocha quente, porosa ou vitrificada. Ou por camadas e mais camadas de cinza que saturavam o ar e podiam sufocar até o sujeito mais vigoroso. Ao longe, uma montanha parecia explodir: os romanos a chamavam de Vesúvio.
Os horrores descritos acima não se referem à mais famosa manifestação de fúria da montanha, aquela que destruiu Pompéia e outras cidades romanas no ano 79 d.C. Pesquisadores dos EUA e da Itália acabam de juntar dados geológicos e arqueológicos para reconstituir uma catástrofe aparentemente muito pior, que teria acontecido 3.800 anos atrás.
Tal como a erupção que varreu Pompéia do mapa do Império Romano, a da Idade do Bronze praticamente congelou no tempo os vilarejos que cercavam o Vesúvio. Além disso, de acordo com os pesquisadores, ela mostra que as conseqüências de um novo dia de fúria do vulcão podem ser ainda piores do que as registradas em Pompéia -e colocar em sério risco toda a zona metropolitana de Nápoles, hoje habitada por cerca de 3 milhões de pessoas. A erupção de Avellino, como é conhecida pelos cientistas, representaria um cenário pessimista, mas nem de longe impossível de acontecer.

Minuto a minuto
Remontar uma erupção vulcânica da Idade do Bronze só se tornou uma tarefa viável porque a compreensão de fenômenos parecidos deu um salto nas últimas décadas, contou à Folha Mike Sheridan, do Departamento de Geologia da Universidade de Buffalo (Estado americano de Nova York). "O estudo de eventos modernos, como a erupção do monte Santa Helena [em 1980, nos EUA] ou em Monserrat [nas Antilhas, em 1995] nos deu muitas pistas sobre como essas coisas acontecem", diz ele. Com base nas características das erupções atuais e no estudo cuidadoso das camadas de material vulcânico cuspido pelo Vesúvio, Sheridan e seus colegas Giuseppe Mastrolorenzo e Lucia Pappalardo, do Observatório Vesuviano, em Nápoles, montaram um verdadeiro minuto-a-minuto da catástrofe de Avellino. O resultado, contado com detalhes mórbidos, está na última edição da revista científica americana "PNAS" (www.pnas.org).
"A primeira coisa que nós temos de levar em conta é que esses eventos geralmente acontecem num intervalo bastante curto de tempo, de 18 horas, por exemplo", diz Sheridan. "Com isso em mente, consideramos coisas como o grau de deposição das cinzas com ou sem camadas, ou a presença ou não de material mais maleável e em forma de lama."
Com base nesses critérios, os pesquisadores estimam que a erupção começou com uma explosão "moderada", seguida de um esguicho de material vulcânico que alcançou uma altitude de 36 km em poucas horas. O Vesúvio, como se fosse uma gigantesca baleia, lançou sobre a planície circundante um jato do chamado material piroclástico. São minerais transformados pelas altas temperaturas do vulcão, que vão desde partículas de cinza até verdadeiros pedregulhos, capazes de soterrar casas e matar pessoas. Em alguns locais, a camada de cinzas chega a 15 m de profundidade.

A grande fuga
Só esse tipo de fenômeno já seria o suficiente para fazer qualquer camponês da Idade do Bronze sair correndo -e foi exatamente isso que eles parecem ter feito. Segundo o antropólogo Pierpaolo Petrone, da Universidade de Estudos de Nápoles Frederico 2º, a planície em volta do Vesúvio era habitada por dezenas de milhares de pessoas. A Campânia, como é conhecida a região de Nápoles, tinha passado por uma explosão demográfica durante o começo daquele período, tal como o resto do sul da Europa, e os habitantes da região cultivavam diversos tipos de cereal e criavam bois, ovelhas e cabras.
Num vilarejo em Nola, cerca de 15 km a nordeste do Vesúvio, os depósitos vulcânicos congelaram cenas da vida diária, tal como o desastre em Pompéia faria mais tarde. As escavações revelaram quatro cabanas, com vasos de cerâmica e outros objetos quase intactos dentro delas; esqueletos de um cão e de nove cabras grávidas, todos presos dentro de um curral e incapazes de escapar do desastre; e pegadas de adultos, crianças e vacas preservadas debaixo de camadas de pedra-pome ejetadas nos primeiros estágios da erupção.

Desafortunados
As únicas vítimas achadas até hoje são um homem e uma mulher, soterrados sob um metro de lava solidificada a cerca de um quilômetro de Nola. Outro achado, bem mais dramático, mostra por que os dois coitados provavelmente foram a minoria: milhares de pegadas humanas encaminhando-se na direção noroeste. O fato de elas terem ficado preservadas na cinza vulcânica sugere, de acordo com os pesquisadores, que o material já esteve frio e firme o suficiente para permitir a passagem sem maiores problemas. A maior parte dos camponeses, portanto, deve ter sobrevivido.
E, aliás, escaparam bem na hora. O último e devastador efeito da erupção foram enxurradas de lama vulcânica. "Nessa região da Itália, você tem muitas fontes naturais que emergem do lençol freático", explica Sheridan. "Acontece que o material do vulcão interage com essa água e sai com pressão, quase como se fosse lama", diz o geólogo.
A região demorou pelo menos 200 anos para ser repovoada -algumas cabanas até chegaram a ser reconstruídas logo após a situação se acalmar, mas logo foram abandonadas. Resumo da ópera: um quadro nada animador caso o Vesúvio alcance nível de fúria comparável no futuro.
"O cenário é realmente bem ruim", resume Sheridan. Embora a maioria da população tenha se salvado, é quase certo que alguns milhares tenham perecido. O maior perigo para seres humanos não é, ao contrário do que julga o imaginário popular, enxurradas de lava, mas sim a quantidade quase inimaginável de cinza vulcânica no ar.
"Você basicamente morre sufocado", diz o geólogo. Se os napolitanos precisavam de um motivo para se preparar para o pior, eis aí mais uma ótima razão.


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