|
Texto Anterior | Índice
+Marcelo Leite
Ciência paranormal
O maior mantra dos céticos do aquecimento é acusar o IPCC
Leia esta coluna como um desabafo. Após quase três décadas de
jornalismo científico, nas quais
esse campo deu um salto notável, é
desanimador encontrar a imprensa
ainda vulnerável ao assédio de grupos
marginais que, na falta de melhor nome, caberia caracterizar como "ciência paranormal".
Não se trata bem da pseudociência
tradicional, daquele tipo fraudulento
que vende barbatana de tubarão ou
cogumelo solar como a última palavra
da pesquisa. Refiro-me aos cruzados
que se empenham no assalto à ciência
natural estabelecida.
À frente marcham os céticos do
aquecimento global -mais bem-sucedidos em suas incursões midiáticas-
e da evolução por seleção natural
-menos ouvidos por jornalistas, mas
com maior inserção social por meio de
igrejas e seitas. Não admitem fazê-lo
por razões ideológicas, morais ou dogmáticas, como a Igreja Católica nas
suas campanhas contra a camisinha e
as células-tronco embrionárias, mas
usam armas similares.
Sua tática tem por alvo a noção de
"ciência estabelecida". O nome pode
ser ruim, mas designa uma coisa boa:
o estado da arte do conhecimento,
conjunto variável de explicações sobre o mundo natural apoiado em observações e aceito pela comunidade
mundial de pesquisadores.
O consenso muda o tempo todo,
mas mantém um núcleo que Thomas
Kuhn chamou de "ciência normal".
Esta sobrevive até que observações
discordantes se acumulem a ponto de
desencadear a famosa "mudança de
paradigma". As teorias são abandonadas ou radicalmente transformadas,
dando origem a outra ciência normal.
Os cruzados do clima e do criacionismo se tomam por cavaleiros do novo paradigma, em investida contra o
moinho climático e darwiniano. Promovem qualquer artigo obscuro a resultado discordante que vai derrubar
a ciência normal. Alegam censura e
repressão, quando sua "ciência" não é
reconhecida (como a "teoria" do design inteligente).
Outra tática empregada é apresentar como prova de refutação as lacunas e incertezas inerentes ao conhecimento científico. Os evolucionistas
não têm uma explicação completa da
origem bioquímica da vida, portanto
estão errados. Modelos climáticos não
passam de simulações, portanto seus
resultados são inservíveis.
O mantra dos céticos do aquecimento é acusar o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do
Clima) de ignorar a variabilidade natural do clima. Segundo os cavaleiros
do paradigma, o painel da ONU menospreza influências como as variações na radiação solar resultantes dos
ciclos de atividade da estrela, ou como
vulcões e raios cósmicos.
Não é verdade. Os aproximadamente 500 autores e 400 revisores do capítulo sobre a base de ciência física do
"Quarto Relatório de Avaliação" do
IPCC (AR-4, 2007) consideraram a literatura sobre aqueles fatores naturais, sim. Concluíram que eles contribuem com cerca de um décimo do potencial de aquecimento das atividades
humanas, como a emissão de gás carbônico pela queima de combustíveis
fósseis e florestas.
É uma questão que admite abordagem empírica. Para isso, cientistas
que discordam têm de produzir novos
dados e submetê-los à avaliação de
seus pares, não de jornalistas.
O IPCC pode não ser santo, mas é
honesto e transparente. Já os céticos e
criacionistas não param de pé sem
uma conspiração repressora de governos, imprensa leiga e periódicos científicos para calar os que bebem a Verdade de fontes a que só eles, os escolhidos, têm acesso.
MARCELO LEITE é autor de "Folha Explica Darwin" (Publifolha, 2009) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
Texto Anterior: Revolução aeróbica Índice
|