São Paulo, domingo, 12 de julho de 2009

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+ Marcelo Gleiser

Terra rara


Mesmo a emergência de vida unicelular é um mistério completo


No ano 2000, dois cientistas americanos publicaram um livro de extrema coragem intelectual: "Rare Earth -Why Complex Life Is Uncommon in the Universe" (Terra Rara -Por que a Vida Complexa é Rara no Universo). Nele, Peter Ward e Donald Brownlee argumentaram que, contrariamente às expectativas de muitos, a Terra é um planeta raro, e a vida, especialmente a vida complexa, mais rara ainda. Seu argumento é baseado na profunda relação entre a evolução da vida e o ambiente terrestre. Claro, suspeitava-se há muito que a vida depende de uma série de circunstâncias climáticas e geológicas. Mas nos últimos 20 anos, descobertas em várias áreas, da geofísica à astronomia, demonstraram que essa relação é crucial. Os avanços vão em duas direções. Por um lado, a descoberta de seres "extremófilos", bactérias capazes de sobreviver em ambientes tradicionalmente considerados extremamente hostis à vida, como o frio e o calor extremos, ausência de luz e oxigênio, ou ainda altíssimos níveis de radioatividade, mostram que a vida é extremamente maleável, ao menos no nível dos seres unicelulares. Com isso, ganhou força o argumento de que se procurarmos nos ambientes exóticos do nosso sistema solar, nas planícies áridas e expostas à radiação de Marte, no subsolo marciano, ou nos oceanos sob a superfície gelada de Europa, talvez possamos encontrar algo digno de ser chamado de vida. Dado que as leis da física funcionam pelo Universo afora, e que as estrelas forjam os mesmos elementos químicos pela vastidão do espaço, ao menos os ingredientes básicos da vida devem existir com certa facilidade. O consenso é que se acharmos planetas parecidos com a Terra, com água líquida e uma boa concentração de elementos químicos, alguma forma de vida alienígena será encontrada. Ward e Brownlee não questionam isso. Por outro lado, o que vemos é que a vida na Terra passou por vários estágios de complexidade cada vez maior. Cada um desses "pulos" necessita de condições muito difíceis de serem reproduzidas com frequência. Mesmo a emergência de vida unicelular é ainda um mistério completo. Não sabemos como moléculas se organizaram para criar uma entidade viva. Mas digamos que esse processo seja relativamente fácil de ser atingido; afinal, o que vemos aqui na Terra é que os bombardeios cósmicos mais intensos cessaram há 3,9 bilhões de anos e os primeiros sinais de vida datam de 3,5 bilhões de anos, ou até 3,8 bilhões de anos. Bem rápido. O próximo passo, a formação das primeiras células procariotas, envolve também etapas desconhecidas. Esses seres reinaram sobre a Terra por quase 2 bilhões de anos, quando os seres eucariotos, ainda unicelulares, começaram a surgir. Esses dois tipos de criatura contribuíram para mudar o planeta. Por meio de uma fotossíntese simplificada, geraram o oxigênio que tornou possível o próximo passo, a formação de seres multicelulares. Entra a Terra. Sem gás carbônico na atmosfera, não seria possível regular a temperatura de modo a manter a água líquida por bilhões de anos. Sem a Lua, o ângulo de rotação da Terra em torno de si mesma variaria continuamente e as estações do ano não existiriam. Sem um campo magnético, seres vivos sofreriam doses letais de radiação do espaço. A lista é longa, e a probabilidade de encontrarmos planetas como a Terra é muito pequena. Se Ward e Brownlee estiverem certos, a vida complexa é uma raridade. A vida inteligente, mais ainda. Seria uma volta ao antropocentrismo da Antiguidade, mas com uma diferença fundamental. Agora sabemos por que somos importantes.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


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