Primeiro uso de ferramenta tem 3,4 milhões de anos

Cortes em ossos de antílope teriam sido feitos com instrumento de pedra

Achado feito na Etiópia indica que ancestrais do homem que pertenciam à espécie de "Lucy" já tinham carne na dieta

REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR INTERINO DE CIÊNCIA

Devoraram a carne, raspada da costela, até o último fiapo. O osso foi aberto em busca de tutano. Faz 3,4 milhões de anos que a cena aconteceu, mas seus restos ainda testemunham a primeira ocasião conhecida em que um ancestral do homem usou instrumentos de pedra.
Usar o termo "os restos" é importante porque os pesquisadores responsáveis pela descoberta, relatada na revista científica "Nature" de hoje, não acharam o machado de pedra em si. Mas flagraram, em dois ossos fossilizados, marcas de corte que só poderiam ter sido feitas com ferramentas rudimentares.
E, como explica Shannon McPherron, especialista do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (Alemanha) e coautora do estudo, cortar carne com ferramentas de pedra parece ser invenção exclusiva da linhagem que desemboca nos seres humanos modernos.
"Os chimpanzés de hoje usam instrumentos de pedra, mas não para desmembrar cadáveres, e não utilizam lascas afiadas", disse McPherron à Folha. "Além disso, não temos evidências da presença de chimpanzés na área onde achamos os ossos", conta ela, referindo-se à região de Dikika, na Etiópia.

ANTÍLOPES
Por isso, afirma a equipe no estudo da "Nature", só há um candidato a responsável pelos cortes e contusões em dois ossos (pertencentes a um animal do tamanho de uma vaca e a outro com as dimensões de uma cabra, ambos provavelmente antílopes). O culpado, apostam eles, seria membro da espécie Australopithecus afarensis, à qual pertence a famosa fêmea apelidada de Lucy.
Os cientistas conduziram análises detalhadas dos ossos, um pedaço de costela e um fragmento de fêmur, debaixo do microscópio eletrônico. Compararam as marcas achadas nos fósseis com outras sabidamente produzidas com ferramentas de pedra e concluíram que essa era a única explicação para os cortes e contusões. Outro pesquisador da área, porém, contesta essa interpretação (leia texto abaixo, à esq.).
Não está claro se o instrumento foi fabricado: os hominídeos (ancestrais do homem) que o usaram podem apenas ter se aproveitado de uma pedra naturalmente afiada. De qualquer maneira, o achado é bem mais antigo do que a primeira evidência direta de ferramentas de pedra, que conta "apenas" 2,6 milhões de anos.
A carne e o tutano do osso de grandes herbívoros (inicialmente obtidos surrupiando carniça, talvez, e não caçando) podem ter sido recursos energéticos valiosos, que teriam permitido o aumento do cérebro dos hominídeos.
"Acho que estamos diante um período amplo de tempo, durante o qual a carne teria sido um componente da dieta, mas antes que ela assumisse um papel importante nessa dieta", diz McPherron.


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