São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2008

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+Marcelo Leite

Nobel - não foi desta vez


Trabalho de Nicolelis ainda enfrentará uma longa fila

Não foi desta vez que o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia saiu para Robert Gallo, co-descobridor do vírus da Aids, o HIV. O prêmio -na realidade, só meio prêmio- ficou com o célebre Luc Montagnier e a quase desconhecida Françoise Barré-Sinoussi. A outra metade, mais que merecida, foi para Harald zur Hausen, por ter identificado o papilomavírus humano (HPV) como origem do câncer cervical (no colo do útero). Gallo foi vítima da controvérsia sobre a primazia pela descoberta do HIV. Hoje, ele e Montagnier se dão bem, tanto que o francês deu declaração dizendo que o americano merecia a láurea. Gallo, elegante, agradeceu. Na década de 1980, não havia elegância na disputa. Montagnier foi o primeiro a isolar o vírus, que chamava de LAV. Gallo provou que o "seu" HTLV causava a Aids. Um acordo político entre EUA e França permitiu que partilhassem a autoria e os royalties dos testes diagnósticos. Depois se verificou que era o mesmo vírus, rebatizado HIV, e que as amostras de Gallo, na melhor hipótese, haviam sido contaminadas por material de Montagnier. O americano permaneceu anos sob suspeita, mas nunca se comprovou má-fé. Ficou a sombra, porém. Não foi desta vez, tampouco, que o Nobel de Medicina saiu para Fernando Nottebohm, Elizabeth Gould e Fred Gage, como aqui se desejou na semana passada. Não era uma previsão, mas alguns leitores assim entenderam. Mantenho a esperança de que os descobridores da neurogênese (formação de neurônios novos) em adultos um dia sejam recompensados. Não foi desta vez, por fim, que o Nobel de Medicina saiu para Miguel Nicolelis. Mais de um leitor cobrou a falta de patriotismo da última coluna, por omitir o brasileiro da Universidade Duke (EUA) e do Instituto Internacional de Neurociência de Natal. A primeira vez que ouvi a previsão sobre Nicolelis foi em abril de 2005, de Dennis Meredith, chefe da assessoria de comunicação da Duke. Foi numa conversa marcada por Nicolelis, cujo laboratório eu visitava para uma reportagem na "Revista da Folha". Meredith afirmou que o comunicado sobre a interface cérebro-máquina de Nicolelis havia sido um dos mais importantes de sua carreira. Graças aos eletrodos implantados na cabeça de macacos, eles conseguem acionar robôs só com o "pensamento". É o primeiro passo para que um dia seres humanos amputados comandem próteses robóticas. Mesmo admirando o trabalho, permaneci cético. O Nobel de Medicina costuma ser dado para descobertas de processos básicos do organismo. Em geral para biologia molecular, nas últimas décadas, ou para a identificação de vírus e bactérias como causas de doenças importantes. Nicolelis não se encaixa nesse figurino. Ouço agora de um leitor perspicaz que a previsão não é totalmente descabida. Ele cita duas premiações que fogem à regra: a PCR, processo para multiplicar cópias de uma seqüência específica de DNA, de larga utilização em qualquer laboratório de biomedicina; e a ressonância magnética nuclear, idem, em hospitais. São bons exemplos, mas têm seus calcanhares-de-aquiles. A PCR recebeu na realidade um Nobel de Química (1993). A ressonância faturou um de Medicina, mas quando isso aconteceu (2003) já tinha ampla aplicação em saúde. Nicolelis não chegou lá. Se e quando chegar, terá uma longa fila pela frente. Não é torcida contra, nem a favor - até porque Prêmio Nobel não é Copa do Mundo.

MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais -Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br

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