São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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Ciência em Dia

O fogo de Vênus

Marcelo Leite
editor de Ciência

Um fenômeno incomum, que se repete apenas em intervalos de longos 122 anos, fez mais em prol da divulgação e da educação científicas, nesta semana, do que milhares e milhares de reportagens, livros e preleções. Nada substitui a observação direta, na hora de despertar interesse e vocação para a ciência, e um evento com a beleza do ocorrido na terça-feira levou milhões de pessoas às ruas para fazer algo que ninguém mais faz: olhar para o céu.
O espetáculo esteve em princípio disponível, total ou parcialmente, para cinco sextos da população da Terra, ou seja, para mais de 5 bilhões de pessoas. Quem não deu azar de topar com nuvens pelo caminho -e dispunha de um filtro obscurecido para não se ofuscar- olhou e viu: o planeta, comumente confundido com uma estrela, passou como uma bolinha negra diante do disco solar, 30 vezes maior. Foram seis horas de desfile, ao todo, o bastante para maravilhar milhões.
Poucos astros estão mais presentes na cultura e no imaginário comum do que Vênus. É a "estrela" mais brilhante do céu, perdendo apenas para a Lua no céu noturno. Como é a última a desaparecer pela manhã e a primeira a surgir após o pôr-do-sol, ganhou uma profusão de nomes: estrela Dalva, estrela da manhã, estrela da tarde, estrela do pastor, estrela matutina, estrela Vésper, estrela vespertina, matutina Vésper, Véspero e até boieira e papa-ceia, no Brasil, segundo o "Dicionário Aurélio".
Não sei hoje, mas muito tempo atrás a explicação fascinante sobre Dalva e Vésper serem a mesma estrela, ou melhor, um planeta, costumava ser desencadeada pela pergunta das crianças acerca da misteriosa Dalva, estrela com nome de mulher, quando alguém entoava a canção singela de Braguinha e Noel Rosa:
A estrela Dalva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor/
E as pastorinhas,
Para consolo da Lua,
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor...
Assim como "Carinhoso", de Pixinguinha e João de Barro, "As Pastorinhas" é provavelmente uma das canções mais presentes na memória dos brasileiros. A simples apresentação dos versos acima deve desencadear a melodia inseparável na cabeça dos leitores. Pode ser até que os acordes se mostrem infecciosos e ocupem a mente por várias horas -pelo menos se trata de um clássico.
Um tipo similar de comportamento uníssono, ou unívoco, levou milhões ao espanto, na terça, diante de Vênus e do Sol. É assim que ciência começa.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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