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Cervejas e alguma sorte
A ação do acaso na vida é mais importante
do que se pensa,
e o cérebro não lida bem com probabilidade, diz físico
em novo livro
RICARDO MIOTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Você é homem, americano, branco, heterossexual e não
usa drogas. Corre o
ano de 1989. Faz
um exame de sangue, desses
descompromissados e, após alguns dias, recebe a notícia: HIV
positivo. O médico sente muito, mas a morte é inevitável. Se
quiser, você pode fazer outro
exame, mas a chance de que
não esteja contaminado é bem
pequena: uma em mil.
Aconteceu com Leonard
Mlodinow, físico do Caltech
(Instituto de Tecnologia da Califórnia) que já havia escrito o
livro "Uma Nova História do
Tempo" com Stephen Hawking. "É difícil descrever (...)
como passei aquele fim-de-semana; digamos apenas que não
fui à Disneylândia", escreve em
"O Andar do Bêbado", seu novo
livro, recém-lançado no Brasil.
Talvez o médico de Mlodinow fosse ótimo. Mas não serviria como estatístico.
Isso porque, em 1989, nos
EUA, uma em cada 10 mil pessoas nas condições citadas estava infectada pelo HIV. Imagine que essas 10 mil fizessem
exames. O único soropositivo
receberia, possivelmente, uma
notícia ruim. Mas, como um
em cada mil exames dá o resultado errado, dez pessoas saudáveis também a receberiam.
Ou seja, nessas condições, de
cada 11 pessoas que recebiam o
veredicto "HIV positivo", apenas uma realmente estava contaminada. A porcentagem de
"falsos positivos" é dez vezes
maior que a de "verdadeiros
positivos". Faria, então, mais
sentido que Mlodinow não deixasse de ir à Disneylândia. No
final, soube que não tinha HIV.
Mas dificuldades com probabilidades não são exclusividade
do médico de Mlodinow. Humanos desprezam a presença
do aleatório nas suas vidas -
nossos cérebros são programados para achar padrões, mesmo
quando não existem.
Isso vai desde coisas evidentemente desprovidas de sentido (como usar uma mesma
meia velha em jogos do Brasil)
até situações mais sérias.
Jegue estabanado
Nesse sentido, é muito comum considerar que sucessos
ou fracassos são resultado exclusivamente da nossa competência. Em boa medida são, claro, mas quanta aleatoriedade
está envolvida nisso?
Jogadores, vendedores, homens atrás de mulheres nas
festas. Quase todas as atividades humanas estão sujeitas ao
acaso. Os resultados se distribuem ao redor de uma média
(alta, para quem é competente), mas existem dias bons
(quando o centroavante faz
três gols e se consagra) e dias
ruins (quando o "pegador" volta pra casa sozinho).
Mas isso vale também para o
mercado financeiro, por exemplo. Será que os investidores
que ganham milhões na bolsa o
fazem porque são competentes
ou porque, em uma série determinada de anos, tiveram mais
sorte -fazendo escolhas tão
"chutadas" quanto muitos que
tiveram menos sucesso?
Como exemplo, Mlodinow
conta a história de Daniel Kahneman, psicólogo que em 2002
ganhou o Nobel de Economia.
Como não se escolhe trabalho
no começo da carreira, ele foi,
nos anos 1960, ensinar aos instrutores da Aeronáutica israelense que recompensar funciona melhor do que punir erros.
Foi interrompido por um dos
instrutores que o ouvia. Ele dizia que muitas vezes elogiou a
manobra de um aluno e, na vez
seguinte, o sujeito se saiu muito
pior. E que, quando gritou com
a besta que havia quase acabado de destruir o avião, ela melhorava em seguida. Os outros
instrutores concordaram.
Estariam os psicólogos errados? Kahneman concluiu que
não. Apenas que a experiência
dos instrutores estava relacionada com a probabilidade.
A ideia dele era que os aprendizes melhoram a sua capacidade aos poucos, e isso não é perceptível entre uma manobra e
outra. Qualquer voo perfeito ou
qualquer pouso que leve embora meio aeroporto junto são
questões pontuais, desvios da
média. Na próxima tentativa, é
alta a chance de que se retorne
ao "padrão" central -nem fantástico, nem desastroso.
Então, diz Mlodinow, quando os instrutores elogiavam
uma performance impecável,
tinham a impressão de que, em
seguida, o aluno piorava. Já se
ele, digamos, esquecia de baixar
o trem de pouso e escutava um
grito de "seu jegue estabanado", na próxima melhorava.
A pergunta por trás do livro é
até que ponto não nos deixamos enganar por desvios da
média como sinais de competência extrema ou de falta de
aptidão para a vida. Quando um
ator é descoberto de repente,
após anos de fracasso, como
Bruce Willis, ou quando alguém ganha muito dinheiro em
poucos anos, como Bill Gates,
qual foi a importância de estar
no lugar certo, na hora certa? O
andar do bêbado, sem direção
consciente, acaba sendo uma
ótima metáfora para os caminhos que tomamos na vida.
LIVRO - "O Andar do Bêbado: Como
o Acaso Determina Nossas Vidas"
Leonard Mlodinow; trad. de Diego
Alfaro; ed. Zahar, 261 págs., R$ 39
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