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A miragem de Helena
Historiadora britânica usa
pesquisas
arqueológicas
para retratar
a mulher que
"causou" a
guerra de Troia
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
A Grécia do fim da
Idade do Bronze
era um lugar tão esquisito que um viajante do tempo familiarizado com os gregos da
época de Sócrates e Platão provavelmente ia achar que se perdeu num universo paralelo.
Em vez de filosofia, participação popular na política e soldados-cidadãos, o turista temporal ia se deparar com templos-palácios suntuosos, túmulos faraônicos para a nobreza,
escribas controlando a distribuição de cada bezerro e cada
grão de cevada. As pessoas já
falavam uma forma arcaica de
grego, mas, tirando isso, seria
possível jurar que eram babilônios ou egípcios. Nesse mundo,
diz Bettany Hughes, viveu a
lendária Helena de Troia.
Hughes, historiadora por
Oxford, conseguiu construir
uma narrativa erudita e envolvente em "Helena de Troia",
recém-lançado no Brasil.
Ao tentar investigar a existência de uma "Helena histórica" (mais ou menos como outros tentam recriar o "Jesus
histórico" ou o "Sócrates histórico"), a historiadora anda com
desteza pelas ondas de choque
que surgem do mito da mulher
mais bela do mundo. Espartanas da época clássica, turistas
romanos, pintores vitorianos e
poetas modernistas -todos,
em alguma medida, transformaram Helena em musa.
Mas, para Hughes, o melhor
modelo para entender a personagem de Homero são as aristocratas do Egeu na Idade do
Bronze tardia, pouco antes do
ano 1200 a.C. Elas eram, de fato, retratadas de forma que faria corar suas descendentes
mais recatadas -e indefesas-
do período clássico da Grécia.
Poderosas
Afrescos, joias e objetos de
arte deixados pela civilização
micênica, como é conhecida essa versão "faraônica" da cultura
grega por causa de Micenas, seu
principal centro, sugerem um
papel social significativo para
mulheres belas e imponentes.
Seguindo, ao que tudo indica, a
moda cretense (povo anterior
que os gregos micênicos conquistaram e absorveram culturalmente), muitas delas aparecem com corpetes apertadíssimos que deixavam os seios descobertos -às vezes com mamilos realçados por maquiagem.
Cenas que parecem ser de rituais, envolvendo espadas,
joias, o Sol e a Lua, árvores e
danças enigmáticas, também
são quase sempre protagonizadas por mulheres nos afrescos
micênicos. Uma das damas é
retratada com armadura completa e elmo feito de presas de
javali na cabeça -apetrecho
guerreiro que, em outros exemplos de arte micênica, só aparece associado a homens.
Assim como outros, Hughes
postula que as mulheres micênicas tinham o papel de senhoras e sacerdotisas da fertilidade
(daí o holofote iconográfico sobre suas curvas e seios), o que
lhes conferia prestígio político.
A beleza e a feminilidade da
Helena do mito, portanto, sinalizaria algo mais do que mera
estética: uma dama poderosa,
talvez com status semidivino,
venerada por seus súditos.
A segunda peça importante
do quebra-cabeças da "Helena
histórica" fica do lado leste do
estreito de Dardanelos. Escavações na Turquia ao longo dos
séculos 19 e 20 revelaram que a
localização atribuída tradicionalmente a Troia realmente
abrigava uma cidadela imponente no fim da Idade do Bronze, e que a fortaleza foi destruída por volta de 1200 a.C.
Textos nos arquivos do Império Hitita, então estabelecido
mais para o interior turco, sugerem que a área de Troia era
um ponto de tensão entre micênicos e hititas. Assim, não seria inconcebível que Troia tivesse mesmo sido destruída
por atacantes gregos, usando a
bela Helena como pretexto.
O quadro geral faz um bocado de sentido, mas é nesse ponto que a musa de Hughes acaba
deixando a historiadora na
mão. É um bocado difícil fazer o
salto entre os incidentes e personagens específicos de Homero na Ilíada e o quadro relativamente impessoal das relações
entre micênicos e asiáticos que
aparece nos arquivos hititas. E
certamente não há quaisquer
referências diretas a Helena,
seu marido corneado Menelau
e os guerreiros gregos Aquiles e
Odisseu (Ulisses) nos textos diplomáticos do Império Hitita.
Também é possível interpretar a iconografia "feminista"
dos micênicos como mero peso
morto cultural, já que eles copiaram avidamente os sofisticados cretenses (assim como,
mais tarde, os romanos copiaram os gregos) sem necessariamente aderir aos mesmos valores sobre o papel das mulheres.
Por último, como a própria
Hughes relata, os palácios micênicos na Grécia continental,
bem como outras cidadelas poderosas do Mediterrâneo
Oriental, acabaram tendo o
mesmo destino de Troia no espaço de uma ou duas gerações:
foram arrasadas por aparentes
invasores. Não é impossível
que, na verdade, os micênicos
tenham sido apenas vítimas, tal
como os troianos.
Nenhum desses pecadilhos,
no entanto, tira o sabor da obra.
Tal como na guerra de Troia,
Helena é um belo pretexto para
um cenário muito maior e mais
fascinante do que ela própria.
LIVRO - "Helena de Troia"
de Bettany Hughes; Editora Record, 588 págs., R$ 69,90
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