São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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+ Marcelo Gleiser A força da pesquisa


Quando ciência e moral colidem, a solução não é o corte de verba


A pesquisa científica e a política nem sempre andam de mãos dadas. Um dos debates mais acirrados do ano passado tratava do uso das células-tronco em terapias regenerativas. As células-tronco, que aparecem em embriões de apenas alguns dias, têm a incrível propriedade de se transformar nas células que irão formar os tecidos do corpo, do coração e fígado aos dentes e cabelos.
Vemos aqui o cerne do problema de uma nova tecnologia com imenso potencial -alguns afirmam até capaz de criar uma nova medicina, a medicina regenerativa. Para serem utilizadas, no entanto, as células-tronco devem ser extraídas de embriões de alguns dias que, no processo, são destruídos. Será que salvar vidas justifica a destruição de embriões? Para o governo americano, não. Um painel organizado pela Casa Branca discutiu as implicações éticas dessa nova tecnologia. Dentre seus integrantes, Michael Gazzaniga, um neuropsicólogo de renome internacional, argumentou que embriões de alguns dias não podem ser considerados vivos pois não têm ainda capacidade cerebral. (Acho que a opinião de Gazzaniga é uma adaptação moderna do que dizia Descartes: "Penso, logo existo".
Embriões não pensam, portanto não existem.) Apesar de válida, sua opinião não fez muitos aliados. O governo proibiu a pesquisa com células-tronco extraídas de embriões. Até mesmo quando cientistas sugeriram que poderiam ser extraídas de embriões que seriam descartados (leia-se destruídos) por clínicas de fertilidade, o governo se opôs. Num país onde US$ 25 bilhões são dedicados à pesquisa anualmente, não receber financiamento é condenar o tópico à morte. Mas não foi o que ocorreu. Na semana passada, cientistas americanos anunciaram que células-tronco extraídas do líquido amniótico podem gerar células de tecidos do cérebro, do fígado, dos ossos, do coração e de vários outros órgãos.
A enorme vantagem disso é que ninguém pode se opor eticamente à extração de líquido amniótico de mulheres grávidas, já que esse é um teste diagnóstico usado no mundo inteiro para identificar sérias doenças genéticas. Sabia-se já que células-tronco podem ser encontradas no líquido amniótico: foram usadas em testes com ovelhas para reparar traquéias e diafragmas danificados e para gerar células das válvulas cardíacas. Mas a nova descoberta mostra que essas células-tronco são quase tão potentes quanto as encontradas em embriões. Não são as mesmas, pois à medida que o feto se desenvolve, as células-tronco vão perdendo sua maleabilidade. Um adulto também tem células-tronco, mas limitadas a gerar células de tecidos que precisam ser regenerados, como o sangue, a pele e os cabelos.
A descoberta promete reaquecer o debate. Afinal, quem insistir que células-tronco não devem ser utilizadas -mesmo se extraídas do líquido amniótico- estará revelando uma posição ética extremamente conservadora, anticientífica. É possível entender que alguém possa se opor à destruição de embriões humanos, mas não à extração de células-tronco do líquido amniótico. Mesmo que o potencial dessas células-tronco seja reduzido, será um avanço imenso no campo da medicina regenerativa.
A missão mais importante da ciência é aliviar o sofrimento humano. Quando novas tecnologias colidem com a sensibilidade ética e moral de alguns, a reação correta não é censurar os cientistas e bloquear o fomento à pesquisa. A reação correta é exatamente a inversa: aumentar o financiamento à pesquisa, para que novas alternativas se façam viáveis. A aposta é na criatividade dos cientistas e no seu contrato com a sociedade.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"


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