São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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+ Marcelo Leite

Desinteligência

Como traduzir a expressão inglesa "intelligent design"?


Certo dia, uma fabulosa fisioterapeuta perguntou a seu cliente como pisava. Enquanto o sujeito matutava, sem atinar com o que responder, ela disse que também não era o caso de ele perder o sono por causa disso. Contou, então, uma história sobre alguém de barba comprida que não conseguira mais dormir. Pelo resto da vida. A tragédia ocorrera depois de lhe perguntarem se a mantinha (a barba) por cima ou por baixo das cobertas.
O paciente da doutora nunca deixou de andar, claro, ainda que com mais cuidado. Caminhar tornou-se uma espécie de atividade intelectual. Outro dia, tropeçou numa questão daquelas: qual é a melhor tradução em português para a expressão inglesa "intelligent design"? "Design inteligente", responderá a maioria dos que já se debruçaram sobre tal doutrina. Segundo a maneira de pensar, que não merece o nome de teoria, o mundo vivo contém organismos, órgãos e estruturas tão complexos que jamais poderiam ser frutos do acaso, como sustenta a teoria darwiniana da seleção natural ("teoria" no sentido de conhecimento racional com base empírica, note bem, não no senso comum de "hipótese").
De fato, foi essa a (não) tradução que se fixou, apesar da urticária que causa em protetores do vernáculo. Os liberais dirão que a palavra "design" já se incorporou à língua portuguesa, com sentido diverso de outras traduções possíveis, como "desígnio", "desenho" e "projeto". Outros, então, argumentarão que é só mais um vocábulo na longa lista de anglicismos, como "software", "commodity", "best seller" e -o pior de todos- "mídia" (pronúncia bárbara de uma expressão latina).
Aqui mesmo, nesta coluna, já se usou tanto "projeto" quanto "design inteligente" -nesta ordem, como que em rendição à tendência. Cabe reconhecer, no entanto, que "desígnio" acentua melhor a intencionalidade pleonasticamente visada pelo complemento "inteligente": é mais de um projetista e menos de um projeto que se trata, para os adeptos dessa doutrina de inspiração criacionista. De Deus, enfim, não tanto de Sua obra. Com "desígnio", porém, a camada de sentido que se perde é exatamente o cerne da raiz latina, de desenho, plano, projeto. Em português, ela se apresenta somente para os amantes e os conhecedores de etimologia, uma espécie francamente em extinção.
"Desígnio inteligente" relegaria a um segundo plano a metáfora implícita do Grande Arquiteto, tão cara a seus seguidores. "Projeto inteligente" resulta na pior tradução, quase uma traição. Sob o manto de zelo castiço, aportuguesa "design" sem consideração com o casamento semântico feliz entre as noções de intencionar e delinear. Em seu significado pedestre de papel rabiscado, põe a perder a idéia de uma atividade pura que superpõe, na tela da mente, os fins e os contornos de uma ação -seu desígnio.
Noves fora, o que resta? "Desenho inteligente", talvez. Soa mais abstrato que "projeto inteligente" e mais próximo de "design inteligente", além de menos redundante que ambos. Quiçá não muito esperto, em seu quixotismo, que nem original consegue ser: a expressão "desenho inteligente" resulta em 990 ocorrências, numa pesquisa feita no buscador Google em língua portuguesa, e 1.290 quando a mesma busca se faz por páginas do Brasil (vá entender por quê). Já "design inteligente" alcança 19.400 e 866, respectivamente. A maioria, já se vê, optou pelas barbas de molho.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático"Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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