São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

Texto Anterior | Índice

Ciência em Dia

Falsos transgênicos e genes secretos

Marcelo Leite
editor de Ciência

Se você é um dos consumidores que se alarmaram com as várias denúncias de presença de soja transgênica em alimentos industrializados à venda no Brasil, nos últimos cinco anos, prepare-se. É boa a chance de que sua preocupação tenha sido à toa, segundo um estudo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
Em causa está a possibilidade de ocorrência de falsos positivos, ou seja, de uma falha metodológica nos testes de DNA que indicaram a presença, nos produtos alimentares, do transgene que confere resistência ao herbicida glifosato à soja RR (Roundup Ready), da Monsanto.
A pesquisa foi feita pelo INCQS (Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, da Fiocruz, www.incqs.fio cruz.br), que se prepara para realizar no Brasil esses testes para detecção de ingredientes transgênicos, a partir de meados do ano. A farmacêutica e bioquímica Paola Cardarelli, do INCQS, explica que os eventuais falsos positivos decorrem do fato de que os testes já homologados para uso oficial não identificam o transgene, diretamente, mas seqüências de DNA associadas com ele.
Cabem aqui uns parênteses explicativos. Transgene é a seqüência de DNA (gene) tirada de um organismo de uma espécie e enxertada em outro de outra espécie. No caso, o gene EPSPS, que dá à soja resistência ao herbicida glifosato (ou Roundup, como se chama a marca da Monsanto), foi retirado da bactéria Agrobacterium tumefaciens e transferido para a planta. Graças a ele, o vegetal se torna capaz de degradar o veneno, que pode então ser aspergido sobre a plantação -matando só as ervas daninhas, e não os valiosos pés de soja.
Ocorre que a modificação genética da soja não envolve só o gene EPSPS. Com ele são incluídas, na chamada construção (ou "cassete"), outras seqüências de DNA, necessárias para que o gene de interesse seja utilizado pela planta com eficiência e da forma pretendida -para que ela produza nas folhas, por exemplo, as enzimas que degradam o glifosato. Essas seqüências incluem pedaços de DNA chamados de promotores (antes do gene EPSPS) e terminadores (depois).
Na soja RR e em 75% das plantas geneticamente modificadas, usa-se um promotor (35S) retirado do vírus do mosaico da couve-flor (Camv). A maioria dos testes para identificação de ingredientes transgênicos em alimentos busca a seqüência de "letras" químicas característica do promotor viral 35S, e não o transgene propriamente dito (o EPSPS de origem bacteriana). Para surgir um falso positivo, basta que o alimento testado contenha o vírus, muito comum em verduras como couve-flor, brócolis e couve -que por sua vez entram como ingredientes em vários alimentos industrializados, como sopas instantâneas.
O grupo de Cardarelli analisou 19 amostras desses vegetais e 52 de alimentos industrializados que os continham como ingredientes. Comprovou que o promotor 35S aparece nos dois grupos. Mais: verificou que algumas das amostras positivas para o promotor 35S deram negativo quando o teste usou sondas específicas para trechos do gene EPSPS propriamente dito.
Uma das razões para os testes homologados usarem só o promotor é o segredo normalmente mantido quanto à seqüência do transgene, por razões de propriedade intelectual. Para Cardarelli, a manutenção desse tipo de segredo é incompatível com a realização de testes confiáveis para detectar transgênicos.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


Texto Anterior: Micro/macro: Um Universo banhado em energia escura
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.