São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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+ ciência

Estudo da maternidade entre animais mostra que ela é só outra tática no jogo da evolução

Coração de mãe

Jessie Cohen - 22.dez.2005/Associated Press
O filhote de panda Tai Shan sai pela primeira vez da toca com sua mãe, Mei Xiang, no Zôo Nacional Smithsonian (Estados Unidos)


NATHALIE ANGIER
DO "NEW YORK TIMES"

Caras nobres, altruístas, suaves e ferozes defensoras da prole de todo o reino animal: o quanto vocês merecem nossa admiração no Dia das Mães e o quão fotogenicamente agradecerão os cartões que nós, progênie ingrata, mandaremos no lugar de um presente decente.
Aqui está uma mãe galinha d'angola, seguida por uma dezena de pintinhos. Acolá, uma mãe panda e um bebê dividem um talo de bambu, enquanto ali uma grande águia negra leva comida para seus filhotes. Nós a amamos, mamãe, você é nosso porto seguro na tempestade. Só você para aparar as garras manchadas de sangue da Mãe Natureza.
Mas espere: essa galinha d'angola está andando terrivelmente depressa. De fato, seus pintinhos não conseguem acompanhá-la e, no final do dia, ôpa, apenas dois pintinhos ainda a seguem. E a mamãe panda, ela não deu à luz dois bebês? Então por que apenas um emerge de sua toca? Quanto à águia negra africana, a mãe conseguiu apanhar presas em abundância. Ainda assim, ela só alimenta uma de suas aguiazinhas, e depois fica lá, olhando com tédio a ave cevada bicar seu irmãozinho faminto até a morte.
O que há de errado com essas mães sem coração, que dão a vida e a jogam fora sem mais? São desviadas, doentes, desnaturadas?
Por mais que nós gostemos de acreditar que as mães animais são feitas para criar e proteger seus filhotes, a natureza é pródiga em mães que desafiam o script maternal de maneiras macabras. Há mães que comem seus filhotes e mães que bebem o sangue deles. Mães que jogam um filhote contra o outro numa luta de morte e mães que alimentam uma parte da prole com a carne do restante. Em várias espécies de mamíferos, incluindo leões, camundongos e macacos, as fêmeas ou abortam seus fetos espontaneamente ou abandonam seus recém-nascidos quando a situação aperta ou um macho novo pinta na área.
Outras mães, como pandas, praticam uma forma de planejamento familiar pós-parto, dando à luz ao que pode ser seu herdeiro e a um reserva e então, quando o herdeiro vinga, abandonando o reserva sem nem dizer adeus. "Os pandas freqüentemente dão à luz gêmeos, mas nunca criam dois bebês", disse Scott Forbes, professor de biologia na Universidade de Winnipeg (Canadá). "Esse é o lado obscuro dos pandas; eles têm dois e jogam um fora."
Isso é algo que os jardins zoológicos, com suas sempre populares jaulas de panda, raramente discutem. "Eles acham que isso é má propaganda para os pandas", disse Forbes.

Falácia naturalista
Os pesquisadores, durante muito tempo, viram o infanticídio e atos semelhantes de maldade materna como resultado de situações de estresse extremo vividas pelas mães. Quando o filho de um agricultor, por exemplo, mexe num ninho de coelho e a coelha responde comendo todos os seus coelhinhos. Pela lógica reinante, não faz muito sentido do ponto de vista genético uma mãe destruir suas crias, e o cuidado materno sempre foi tido e havido como um comportamento inato.
Mais recentemente, os cientistas acumularam evidências de que a "má" maternidade é comum na natureza e muitas vezes até mesmo a peça central no jogo reprodutivo.
No blockbuster "A Marcha dos Pingüins", os pingüins-imperadores são retratados como pais de conto-de-fadas, amando cada ovo que põem e chorando por cada ovo que quebra antes do tempo. Entre os menos aclamados pingüins-reis, a mãe põe dois em cada temporada de acasalamento, sendo o segundo 60% maior que o primeiro. Pouco antes de o segundo ser posto, a mãe rola o primeiro para fora do ninho sem dó.
Entre os pingüins-de-magalhães, a mãe também põe dois ovos e deixa ambos chocarem. Só então começa a discriminar. De todo peixe que traz para o ninho, ela dá 90% para o filhote maior, mesmo com o menor uivando de fome. No frio impiedoso da Antártida, a avezinha desnutrida morre invariavelmente.

Fratricídio
Assim como os pingüins, muitas espécies que descartam parte de sua prole vivem em ambientes duros ou incertos, nos quais filhotes se perdem com facilidade, portanto compensa ter um reserva. Ao mesmo tempo, justamente essa dureza do ambiente virtualmente impossibilita a mãe de criar múltiplos. Então, se o principal sobrevive, o secundário precisa morrer. Às vezes é a própria mãe quem faz o serviço sujo. Geralmente, ela deixa seu filho preferido despachar seu rival.
Quando Douglas W. Mock, da Universidade de Oklahoma (EUA), começou a estudar garças no Texas, três décadas atrás, ele sabia que bebês maiores bicavam os menores até a morte. Ainda assim, Mock foi pego desprevenido pelo que viu -ou não conseguiu ver. Ele assumira que ataques assassinos certamente aconteceriam quando mamãe e papai estivessem fora pescando. "Eu pensava que, se os pais estivessem por perto, eles impediriam essas coisas", disse. "Eu tenho três irmãos mais velhos, e nunca teria chegado aqui se meus pais não tivessem intercedido."
No entanto, o que Mock viu foi uma total indiferença parental. "O progenitor ficava penteando as penas com uma cara completamente blasé", diz Mock, autor do livro "More Than Kin and Less Than Kind: The Evolution of Family Conflict". "Nos 3.000 ataques que testemunhei, nunca vi os pais tentarem intervir. Era como se eles esperassem acontecer." Desde então, o fratricídio sob supervisão parental foi observado em muitas espécies de ave, como pelicanos, grous e atobás.
Um pesquisador observou um ninho de águias negras africanas por três dias, período no qual o bebê maior se alternava entre apunhalar seu irmão e apanhar comida do bico da mãe. Quando o corpo da aguiazinha foi jogado no chão, o pesquisador havia contado 1.569 bicadas.
Em outros casos, as mães se tornam infanticidas porque são otimistas natas, sempre na expectativa de que o futuro será brilhante. A cada ano, elas se reproduzem fartamente, trazendo ao mundo um máximo de bocas famintas no início da estação; e, quando há comida em abundância, elas proverão cada filhote.
Se o banquete não se materializa, no entanto, elas reduzem suas perdas. Os cangurus têm um método elaborado de criar filhotes. Num bom ano, uma mãe pode cuidar de três ao mesmo tempo, cada um em um estágio diferente de desenvolvimento (um juvenil, um bebê que mama na bolsa e um embrião em animação suspensa). Numa seca, no entanto, a mãe recusará leite ao juvenil. Se a seca persiste, o leite seca e o lactente morre. É quando o embrião começa a se desenvolver. Amanhã certamente será um dia melhor.


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