São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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Ciência em Dia

Nomes próprios

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Chame-me M*. E, no lugar de M*, faça um gesto com o polegar e o indicador da mão direita em formato de cê, o dedo médio sobreposto ao indicador, e o conjunto todo levado até a altura do olho direito, movendo a mão para frente e para trás três vezes seguidas, como quem tira e põe os óculos. Você acaba de aprender meu nome na linguagem de sinais dos surdos.
Recebi tal nome há mais de sete anos, pelas mãos do instrutor Ricardo Nakasato, figura central de uma reportagem em que o apelidei de "Samurai dos sinais". Nakasato é conhecido entre surdos por um sinal parecido, polegar e indicador reunidos numa pinça que puxa o canto do olho direito, referência à sua ascendência oriental. No meu caso, o sinal com dedos sobrepostos é uma alusão às sobrancelhas.


A ciência revela cada vez mais que as outras espécies carregam sentimento, inteligência e, va lá, consciência


Senti uma emoção incomum no dia em que fui rebatizado. Guardadas as devidas proporções, foi algo semelhante ao que deve ter experimentado o alemão Curt Unkel ao receber de índios guaranis o nome de Nimuendaju, "aquele que faz o próprio lar". Unkel, autor do primeiro e monumental mapa do IBGE localizando 1.400 grupos de índios brasileiros e seus 40 troncos lingüísticos, adotou o nome indígena em seus trabalhos acadêmicos, e foi com ele que entrou para a história da antropologia.
Nome próprio é coisa séria. Mas não é coisa só de humanos, a julgar por um estudo publicado terça-feira no periódico científico "PNAS", da academia de ciências dos EUA. Segundo o artigo de Vincent Janik, golfinhos da espécie Tursiops truncatus também se identificam por assobios pessoais e intransferíveis, reconhecidos por parentes próximos e outros membros do grupo.
A questão já era debatida há tempos entre especialistas. Muitos argumentam que esses mamíferos aquáticos não usam propriamente nomes, mas simples assobios em que o importante não seria a estrutura da vocalização em si, mas sim a maneira como era emitida -a "voz" do golfinho, para simplificar. Se os céticos estivessem certos, esses cetáceos conseguiriam distinguir os indivíduos da espécie pela emissão, e não tanto pelo conteúdo dos supostos nomes.
Janik relata ter resolvido a questão com uma artimanha: usou um sintetizador para gerar os assobios próprios despidos de qualquer assinatura de voz. E constatou que a maioria dos golfinhos voltava-se com mais freqüência para o alto-falante submerso quando o nome de um parente era pronunciado pela máquina. O mais importante, portanto, seria mesmo o conteúdo estrutural do assobio, não qual animal o emite, ou como.
O trabalho é notável. Pode e deve ser saudado como uma dessas pequenas revoluções que sacodem a auto-representação dos homens e seu lugar no mundo. Mais um terremoto na fronteira murada que segregava a natureza da cultura. A ciência natural revela cada vez mais que as outras espécies vivas carregam suas próprias mesclas peculiares de sentimento, inteligência e, vá lá, aquilo que chamamos de consciência.
Que nome dar para essa nova e generosa visão da vida?

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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