São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008

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+ Marcelo Leite

Higgs, 44


Há quem defenda que a ausência do bóson será mais fecunda para a física

O vôo de Stuttgart para Genebra, num jato de pequeno porte, durou pouco mais de uma hora. A rota passava junto do Mont Blanc, uma das montanhas mais belas do mundo. Do aeroporto internacional de Cointrin, o grupo de jornalistas seguiu de ônibus para a sede da Organização Européia de Pesquisa Nuclear (Cern), entre Meyrin (Suíça) e St. Genis (França). Ali foram divididos em subgrupos, por línguas. Aulas curtas foram dadas sobre o maior acelerador de partículas do mundo. Seu túnel de 27 km fora aberto para penetrar os últimos mistérios do Universo. Na mira de seus feixes de partículas de alta energia estava o escorregadio bóson de Higgs, cuja detecção já era o Santo Graal do Modelo Padrão da física. Depois da palestra, os que entendiam inglês seguiram para o detector Aleph de microônibus. No posto de fronteira, um oficial de imigração subiu no veículo. A reportagem correu o risco de terminar ali mesmo. O enviado especial da revista alemã "Bild der Wissenschaft" não tinha o visto de entrada que a França exigia, na época, de brasileiros. Nenhum passaporte, porém, foi vistoriado. Ainda suando frio, este colunista seguiu com o grupo para o elevador. O percurso de uma centena de metros para dentro da terra pareceu interminável, tamanha era a expectativa. Ao abrir-se a porta, o pé-direito com dezenas de metros não deixava espaço para decepção. Uma legião de técnicos e cientistas se movimentava entre centenas de quilômetros de cabos e gigantescas peças de metal. Últimos preparativos para ligar a máquina que deveria mapear as entranhas do átomo. O ano era 1989, e a máquina era o LEP, construída para colidir elétrons com suas partículas-irmãs de carga oposta (positiva), os pósitrons. O clarão da chuva de subpartículas produzido com a colisão iluminaria a escuridão da matéria. Era essa a promessa. A esperança. Em 2 de novembro de 2000, após 11 anos de operação, o LEP foi desligado. Ajudara a pôr o Modelo Padrão em base sólida: só existiam três famílias de partículas fundamentais da matéria -léptons, bósons e quarks. A aposentadoria deveria ter ocorrido em setembro, mas o LEP reservara uma surpresa de última hora. Em algumas de suas colisões finais, os cientistas do Cern acreditaram ter vislumbrado a assinatura do Higgs. Dois meses de sobrevida mostraram que se tratava de um alarme falso. O bóson permaneceria incógnito, e assim continuou durante os oito anos de construção do sucessor do LEP, o Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês). Chegou a vez do LHC de ser inaugurado, no mesmo túnel. Os primeiros feixes foram acelerados na última quarta-feira. Agora, prótons serão lançados contra prótons. Muito mais maciços, esses ocupantes dos núcleos atômicos (hádrons) devem alcançar energias nunca antes registradas num acelerador de partículas. Sua colisão frontal, quando se realizar nos próximos meses, poderá finalmente flagrar o bóson de Higgs. É essa a promessa. A esperança. Isso ajudaria a explicar por que só algumas partículas têm massa. Mas nada garante que o Higgs dê as caras, 44 anos após a previsão teórica. Muitos físicos já dizem que sua ausência resultará mais fecunda para a física que a detecção, pois forçará uma reforma do modelo. São, ao todo, 19 anos de caçada no subsolo da fronteira franco-suíça. Só no LHC foram enterrados US$ 9 bilhões. É difícil imaginar uma fortuna mais bem empregada.

MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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