São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

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ECOLOGIA

Árvore amazônica defende-se de traição de formiga destruindo abrigos para o inseto em suas folhas, revela estudo

Planta engana formiga que engana planta

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

Hirtella myrmecophila e Allomerus octoarticulatus vivem um casamento desigual e tempestuoso, é o mínimo que se pode dizer. A aparência é de uma relação consensual e de benefício mútuo, mas o parceiro vive enganando a parceira, que revida com mais trapaça -assim como em muitos relacionamentos humanos.
A analogia é tentadora, mas termina por aqui. H. myrmecophila é uma pequena árvore de terra firme da região amazônica, que, como o nome sugere, tem uma predileção especial por formigas ("myrmex", em grego). A. octoarticulatus, por seu turno, é a espécie desse inseto que a evolução encarapitou na planta, condenando-a a viver apenas nos galhos daquela espécie vegetal.
Ambos os organismos contraíram uma relação que a biologia chama de mutualismo, em que a associação traz benefícios para as duas partes.
No caso, a formiga protege a planta de outros insetos comedores de folhas e dela recebe abrigo, em bolsas na base das folhas conhecidas como domáceas (veja quadro à direita). Isso, claro, sem mencionar as trapaças.

Traição
As mirmecófitas -como são batizadas as plantas ("phyto", em grego) que se associam com formigas- são velhas conhecidas da biologia e de Heraldo Vasconcelos, ecólogo do Instituto de Biologia da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais.
Também são estudadas e documentadas as traições por formigas, que abusam da hospitalidade e acabam prejudicando o parceiro vegetal -por exemplo, impedindo-o de produzir flores e, consequentemente, de se reproduzir.
Inédita, para a ciência, era a adaptação que a H. myrmecophila desenvolveu para revidar o logro por parte do inseto. Ela foi estudada em detalhe por Thiago Izzo, orientando de Vasconcelos quando ainda atuava no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus.
Izzo estudou 600 plantas da espécie, numa floresta de 800 hectares mantida pelo projeto Biodinâmica de Fragmentos Florestais (colaboração entre o Inpa e a Smithsonian Institution, dos Estados Unidos) a 70 quilômetros ao norte de Manaus.
Do total de árvores inspecionadas pelo cientista, 583 (97,16%) possuíam colônias da formiga Allomerus octoarticulatus.

Quando a casa cai
Izzo percebeu que havia galhos sem domáceas e sem formigas, mas com inflorescências (grupo de flores com um pedúnculo comum). Já nos galhos com as bolsas cheias de formigas, não havia estruturas de reprodução vegetal.
"A novidade do nosso trabalho está em demonstrar que a planta se livra da domácea e, assim, das formigas quando essas se tornam indesejáveis", diz Vasconcelos, referindo-se ao hábito incômodo do hóspede de cortar inflorescências para abrir espaço às folhas.
Aparentemente, a planta desenvolveu algum mecanismo bioquímico que derruba a casa das formigas quando as folhas alcançam certa idade. Com o galho todo livre dos insetos folgados, as inflorescências podem enfim brotar.
"No jargão dos estudiosos de mutualismos, chamamos isso de "trapaça", já que, para benefício próprio, a formiga prejudica o seu parceiro", diz o ecólogo da Universidade Federal de Uberlândia.



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