|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
Grão de sal para células-tronco
Marcelo Leite
editor de Ciência
A expressão latina "cum grano salis"
resume bem aquilo que está faltando em todo esse qüiproquó sobre a Lei
de Biossegurança aprovada há pouco
mais de uma semana pela Câmara dos
Deputados: não levar a sério demais as
posições extremas que vão se cristalizando quanto à proibição, nela, da pesquisa
com embriões humanos -e portanto
com células-tronco embrionárias.
(Isso para não falar da não menos polêmica questão do licenciamento de alimentos transgênicos, de que já tratei em
outra oportunidade.)
O texto foi encaminhado ao Senado
Federal, mas não havia até o meio da semana garantia de que a Casa usaria sua
prerrogativa de câmara revisora para
consertar os vários problemas terminológicos e conceituais apontados por especialistas, como a confusão entre terapia celular em geral e pesquisa com células-tronco embrionárias. Tampouco havia indicação de que pudesse desfazer o
acordo político com bancadas de orientação religiosa, centrado na proibição à
pesquisa com embriões, que permitira a
aprovação da lei na Câmara.
Para quem não acompanhou de perto
a questão, cabe relembrar: o texto legal
aprovado impede o emprego de embriões humanos como material biológico disponível. Isso põe na ilegalidade
tanto a utilização de embriões que já sobram nas clínicas de reprodução assistida quanto a chamada clonagem terapêutica -produzir embriões humanos com
a mesma técnica usada para gerar a ovelha Dolly, a fim de obter deles linhagens
de células-tronco. A obtenção de células-tronco por essa via acarreta a destruição
da bolinha de células originada da fusão
de uma célula adulta com um óvulo desnucleado, técnica chamada de transferência nuclear de célula somática.
Esse tipo de proibição genérica a um
campo de pesquisa, por razões morais,
não faz sentido. Em geral tais restrições
acabam caindo de maduras, tornando-se
minoritárias ou dogmas em desuso mesmo entre as denominações religiosas que
as patrocinam. Consagrá-las em lei é
criar um veto em regra para uma atividade excepcional e promissora (a pesquisa
científica), que já nasce anacrônico.
Dito isso, cabe ressalvar que não se trata aí de uma espécie de guerra santa entre
obscurantistas, de um lado, e iluminados, de outro. Mesmo os mais ferrenhos
defensores da pesquisa fortaleceriam sua
posição se abandonassem o pedestal
moralista que galgaram por conta própria e demonstrassem um mínimo de tolerância com a repulsa moral legítima experimentada por aqueles que não conseguem deixar de ver um ser humano numa bola de células indiferenciadas.
Arrogar-se o monopólio da Luz (do saber, no caso) e desterrar os oponentes ao
Reino das Trevas é ignorar que essa fronteira em que se inicia o humano não é algo de dado ou empiricamente determinável, muito menos algo a ser definido
apenas com base em uma suposta autoridade científica. Reconhecer que tal limite é móvel e tem de ser negociado impõe-se como primeiro passo para chegar
a alguma decisão mais sábia e útil, por
aplicável e flexível.
O pior erro que o pesquisador pode cometer é comportar-se como um religioso. Se não se dispõe a evitá-lo por grandeza ou convicção democrática, que o faça por pragmatismo: a adoção dessa atitude sectária já se mostrou de todo contraproducente, no caso dos transgênicos.
Cientistas, supostamente, devem
aprender com a experiência.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: Samba do neutrino doido Índice
|