São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009

Texto Anterior | Índice

+ Marcelo Leite

Analfabetos em números


Os colchetes inventados para salvar a cara do presidente não funcionaram

Pior que errar é não reconhecer o erro -ao qual todos estão sujeitos, afinal. O presidente Lula errou feio quando se meteu a falar de analfabetismo em São Paulo e no Brasil, em comício para prefeitos. Não se corrigiu, oferecendo constrangedora demonstração pública de inabilidade tanto com números quanto com fatos.
Sua máquina de propaganda, sob o nome de Secretaria de Imprensa da Presidência, tentou justificar o deslize. Fez circular "esclarecimentos" sobre o discurso para "proporcionar seu correto entendimento". Insinuou, nas entrelinhas, que o erro fora dos jornalistas presentes, mas em verdade protagonizou um típico caso de emenda pior que o soneto.
Aos números e aos fatos, portanto: uma verdadeira salada presidencial. Lula afirmou: "No Sudeste, nós temos 5,7% de analfabetos. Mas, pasmem, caiam de costas, Kassab, porque você não sabia e eu não sabia: no Estado de São Paulo nós ainda temos 10% de analfabetos no Brasil. O Estado mais rico da Federação".
Uma emenda orwelliana da secretaria agregou à transcrição da fala, entre colchetes, a expressão "do total", coisa que Lula não pronunciou, nem parece ter tido em mente. Na versão retocada, a frase ficou assim: "No Estado de São Paulo nós ainda temos 10% [do total] de analfabetos no Brasil".
O índice correto de analfabetismo em SP, ou seja, a parcela da população do Estado nessa condição, é 4,2%, como informa o "esclarecimento". O que o texto não destaca, como deveria para dar o quadro interpretativo correto, é que essa é a quarta melhor taxa brasileira (atrás só de DF, RJ e SC). A média nacional, outro parâmetro de comparação, é 9,2%.
Os 10% de Lula no palanque se referem à parcela de analfabetos do Brasil que vivem em São Paulo (10,3%, para ser exato, se fosse exata a tabela da secretaria). Como o "Estado mais rico da Federação" tem também a maior população na faixa considerada (22,5% do total), não há nada demais nisso. Ao contrário.
Os colchetes inventados para salvar a cara do presidente nem de longe conseguem fazê-lo. Lula misturou alhos com bugalhos.
O melhor indício é que, na primeira frase do trecho em questão, ele fala em 5,7% de analfabetos no Sudeste, portanto de uma taxa, e não da parcela no total nacional (24,7%).
Há outros erros no discurso, que a secretaria não julgou necessário "esclarecer", mas reforçam a tese do embaralhamento presidencial com os dados. Lula diz que 19,9% dos analfabetos do Brasil estão no Nordeste, região onde nasceu. Pela tabela de sua secretaria, são 53,3%.
O aloprado que colheu números para rechear o discurso talvez tivesse em mente a taxa média de analfabetismo na região, mas somando e dividindo os percentuais dos nove Estados nordestinos fornecidos no quadro propagandístico chega-se a 18,9%. Um ponto percentual de diferença, que no contexto corresponde a um erro de 5%, mas que, noves fora, também pode resultar de sucessivos arredondamentos.
A tabela da Secretaria de Imprensa da Presidência cita como fonte a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, instituição ciosa das estatísticas oficiais do país. No quadro, porém, a população brasileira total de pessoas com dez anos ou mais aparece com o valor 159.361.
Obviamente, trata-se de 159 milhões e quebrados. Faltou indicar que todas as cifras ali relacionadas estão em milhares.
Não é só o presidente que se enrola com números no Planalto.


MARCELO LEITE é autor da coletânea de colunas "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e do livro de ficção infanto-juvenil "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009), sobre biocombustíveis e florestas. Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).

E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


Texto Anterior: E-fumo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.