|
Próximo Texto | Índice
DESASTRE EM ALCÂNTARA
Processo de preparação do lançador de satélites desrespeitou medidas elementares de segurança
Descontrole gerencial provocou acidente com VLS, diz relatório
SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
A leitura do relatório da comissão de investigação do acidente
com o foguete VLS-1 (Veículo
Lançador de Satélites), ao qual a
Folha teve acesso, revela uma sucessão de falhas que demonstra o
descontrole na operação de lançamento que matou 21 técnicos civis
no dia 22 de agosto de 2003.
Os dispositivos responsáveis
pelo acionamento dos motores do
foguete começaram a ser instalados na manhã do dia 22, desrespeitando o cronograma original
da missão, que previa a execução
da tarefa para o dia seguinte.
Contrariando as regras, que dizem que nada mais pode ser feito
enquanto os dispositivos estão
sendo instalados, o serviço foi
executado enquanto outras equipes trabalhavam simultaneamente no foguete. Entre as atividades,
havia gente fazendo testes da rede
elétrica, serviço que deveria ter sido concluído uma semana antes.
Também fugindo às normas,
foram instalados os dispositivos
de acionamento em apenas dois
dos motores do primeiro estágio
do veículo lançador, deixando outros dois para depois do almoço.
Quando voltaram para concluir o
serviço, o foguete e 21 técnicos e
engenheiros não existiam mais.
A seqüência de eventos acima
foi apenas a derradeira série de erros operacionais e gerenciais de
uma farta coleção que remonta ao
mês de abril e que será revelada
com a divulgação do relatório da
comissão de investigação do acidente ocorrido no Centro de Lançamento de Alcântara (MA).
O documento, que será apresentado pelos ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia
amanhã, em Brasília, não trará a
causa exata para o acionamento
prematuro de um dos quatro motores do primeiro estágio do VLS,
durante a preparação para o lançamento, mas apenas uma série
de hipóteses sobre a origem da
corrente elétrica que precipitou o
início da combustão.
Em compensação, mostrará por
que foi impossível determinar a
causa exata deste acidente: uma
operação caótica, que teve equipes trabalhando simultaneamente em tarefas incompatíveis entre
si, falta de controle eficaz de acesso à plataforma, problemas elétricos crônicos no centro de lançamento, falta de manutenção da
infra-estrutura, ausência de análises de risco, de controle das atividades em tempo real e de gerenciamento efetivo da operação.
Cascata de efeitos
Os problemas começaram em
16 de abril, quando ordens superiores vindas da Aeronáutica comandaram o retorno imediato
das equipes do IAE (Instituto de
Aeronáutica e Espaço) do CTA
(Centro Técnico Aeroespacial),
então alocadas no Centro de Lançamento de Alcântara para preparar a terceira tentativa de levar
o VLS-1 ao espaço.
Não houve explicações para a
ordem de interrupção. Os técnicos e engenheiros retornaram a
São José dos Campos, mas as partes do foguete ficaram em Alcântara. Quando a operação foi retomada, em 2 de julho, também sem
explicações, não houve testes para
verificar a integridade dos equipamentos, após dois meses e
meio no centro de lançamento.
Durante os meses de julho e
agosto, as dependências do centro
foram afetadas por sucessivas falhas e flutuações de energia elétrica. Blecautes aconteceram em
momentos críticos, como durante
o transporte de um dos propulsores do foguete até a Torre Móvel
de Integração (prédio na plataforma de lançamento que permite a
montagem do VLS).
Também foram verificados problemas com o sistema de cabos
elétricos que ligava a casamata
(centro de controle avançado,
próximo à plataforma) ao lançador. Esses cabos transmitiam não
somente as leituras dos sensores
colocados no foguete, mas também os comandos de acionamento dos motores, ou linhas de fogo.
Em várias ocasiões, técnicos e
engenheiros do IAE pediram aos
responsáveis pelo centro de lançamento que fizessem a manutenção dos cabos, encontrados
imersos em lama e afetados por
água nas suas calhas. Os problemas não chegaram a ser totalmente sanados. Suspeita-se que a
manutenção não tenha sido feita
regularmente desde 1999, quando
ocorreu a última tentativa de lançar um protótipo do VLS.
Blecautes e anomalias
Durante a primeira contagem
simulada, ocorrida entre 17 e 18 de
agosto, um blecaute deixou as
equipes no escuro. Na segunda
contagem, foram medidos valores anômalos das linhas de fogo.
O chefe da equipe de eletrônica
apontou a necessidade de realizar
"uma análise mais aprofundada".
A comissão de investigação não
encontrou evidências de que isso
tenha ocorrido.
Pelo cronograma da missão, a
verificação das redes elétricas do
VLS deveria ter ocorrido até dez
dias antes do lançamento. Mas os
relatos mostram que, até o dia do
acidente, os técnicos do IAE ainda
duelavam com essas tarefas.
A plataforma inercial, uma das
peças mais delicadas do foguete,
responsável pela guiagem do veículo em vôo, foi transportada inadequadamente, num carro de
passeio particular, sem etiquetas
indicando o conteúdo "frágil" da
embalagem. Os engenheiros também detectaram problemas intermitentes com esse sistema, até o
acidente. A própria base de instalação do sistema no lançador aparentemente foi danificada, depois
que um técnico contrariou as normas e subiu ali.
Comando da operação
Todas essas informações chegavam à chefia da operação em relatórios produzidos pelas equipes
no início de cada dia, indicando as
atividades realizadas e as dificuldades enfrentadas. Apesar disso,
não houve esforço no sentido de
acompanhar as atividades em
tempo real, ou mesmo coordenar
sua realização adequadamente.
Apesar disso, a Aeronáutica
promoveu, após o acidente, o
coordenador-geral da operação
de lançamento, brigadeiro-do-ar
Tiago Ribeiro, a vice-diretor do
Deped (Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento), órgão hierarquicamente superior ao CTA.
O adjunto do coordenador-geral,
Mauro Dolinsky, segue exercendo cargo de chefia no IAE.
Caso não tivesse terminado em
tragédia, seria a terceira tentativa
de lançar o VLS-1. As duas outras,
em 1997 e 1999, fracassaram. Nas
ocasiões, o coordenador-geral
também foi Tiago Ribeiro, que só
chegou à base uma semana antes
do acidente. Logo após a catástrofe, no ano passado, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva prometeu realizar novo lançamento até
o final de seu mandato, em 2006.
O Ministério da Defesa, órgão
governamental que encabeça a
administração do projeto do VLS,
deve anunciar o acerto de uma
parceria com a Rússia para conduzir uma revisão crítica do lançador, por US$ 1 milhão, e cumprir a promessa presidencial.
As negociações com os russos
não tiveram a participação da
AEB (Agência Espacial Brasileira), entidade civil que supostamente deveria coordenar o programa espacial nacional.
Próximo Texto: Trecho: Segurança não tinha poder para impedir o acesso Índice
|