São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

Próximo Texto | Índice

DESASTRE EM ALCÂNTARA

Processo de preparação do lançador de satélites desrespeitou medidas elementares de segurança

Descontrole gerencial provocou acidente com VLS, diz relatório

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

A leitura do relatório da comissão de investigação do acidente com o foguete VLS-1 (Veículo Lançador de Satélites), ao qual a Folha teve acesso, revela uma sucessão de falhas que demonstra o descontrole na operação de lançamento que matou 21 técnicos civis no dia 22 de agosto de 2003.
Os dispositivos responsáveis pelo acionamento dos motores do foguete começaram a ser instalados na manhã do dia 22, desrespeitando o cronograma original da missão, que previa a execução da tarefa para o dia seguinte.
Contrariando as regras, que dizem que nada mais pode ser feito enquanto os dispositivos estão sendo instalados, o serviço foi executado enquanto outras equipes trabalhavam simultaneamente no foguete. Entre as atividades, havia gente fazendo testes da rede elétrica, serviço que deveria ter sido concluído uma semana antes.
Também fugindo às normas, foram instalados os dispositivos de acionamento em apenas dois dos motores do primeiro estágio do veículo lançador, deixando outros dois para depois do almoço. Quando voltaram para concluir o serviço, o foguete e 21 técnicos e engenheiros não existiam mais.
A seqüência de eventos acima foi apenas a derradeira série de erros operacionais e gerenciais de uma farta coleção que remonta ao mês de abril e que será revelada com a divulgação do relatório da comissão de investigação do acidente ocorrido no Centro de Lançamento de Alcântara (MA).
O documento, que será apresentado pelos ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia amanhã, em Brasília, não trará a causa exata para o acionamento prematuro de um dos quatro motores do primeiro estágio do VLS, durante a preparação para o lançamento, mas apenas uma série de hipóteses sobre a origem da corrente elétrica que precipitou o início da combustão.
Em compensação, mostrará por que foi impossível determinar a causa exata deste acidente: uma operação caótica, que teve equipes trabalhando simultaneamente em tarefas incompatíveis entre si, falta de controle eficaz de acesso à plataforma, problemas elétricos crônicos no centro de lançamento, falta de manutenção da infra-estrutura, ausência de análises de risco, de controle das atividades em tempo real e de gerenciamento efetivo da operação.

Cascata de efeitos
Os problemas começaram em 16 de abril, quando ordens superiores vindas da Aeronáutica comandaram o retorno imediato das equipes do IAE (Instituto de Aeronáutica e Espaço) do CTA (Centro Técnico Aeroespacial), então alocadas no Centro de Lançamento de Alcântara para preparar a terceira tentativa de levar o VLS-1 ao espaço.
Não houve explicações para a ordem de interrupção. Os técnicos e engenheiros retornaram a São José dos Campos, mas as partes do foguete ficaram em Alcântara. Quando a operação foi retomada, em 2 de julho, também sem explicações, não houve testes para verificar a integridade dos equipamentos, após dois meses e meio no centro de lançamento.
Durante os meses de julho e agosto, as dependências do centro foram afetadas por sucessivas falhas e flutuações de energia elétrica. Blecautes aconteceram em momentos críticos, como durante o transporte de um dos propulsores do foguete até a Torre Móvel de Integração (prédio na plataforma de lançamento que permite a montagem do VLS).
Também foram verificados problemas com o sistema de cabos elétricos que ligava a casamata (centro de controle avançado, próximo à plataforma) ao lançador. Esses cabos transmitiam não somente as leituras dos sensores colocados no foguete, mas também os comandos de acionamento dos motores, ou linhas de fogo.
Em várias ocasiões, técnicos e engenheiros do IAE pediram aos responsáveis pelo centro de lançamento que fizessem a manutenção dos cabos, encontrados imersos em lama e afetados por água nas suas calhas. Os problemas não chegaram a ser totalmente sanados. Suspeita-se que a manutenção não tenha sido feita regularmente desde 1999, quando ocorreu a última tentativa de lançar um protótipo do VLS.

Blecautes e anomalias
Durante a primeira contagem simulada, ocorrida entre 17 e 18 de agosto, um blecaute deixou as equipes no escuro. Na segunda contagem, foram medidos valores anômalos das linhas de fogo. O chefe da equipe de eletrônica apontou a necessidade de realizar "uma análise mais aprofundada". A comissão de investigação não encontrou evidências de que isso tenha ocorrido.
Pelo cronograma da missão, a verificação das redes elétricas do VLS deveria ter ocorrido até dez dias antes do lançamento. Mas os relatos mostram que, até o dia do acidente, os técnicos do IAE ainda duelavam com essas tarefas.
A plataforma inercial, uma das peças mais delicadas do foguete, responsável pela guiagem do veículo em vôo, foi transportada inadequadamente, num carro de passeio particular, sem etiquetas indicando o conteúdo "frágil" da embalagem. Os engenheiros também detectaram problemas intermitentes com esse sistema, até o acidente. A própria base de instalação do sistema no lançador aparentemente foi danificada, depois que um técnico contrariou as normas e subiu ali.

Comando da operação
Todas essas informações chegavam à chefia da operação em relatórios produzidos pelas equipes no início de cada dia, indicando as atividades realizadas e as dificuldades enfrentadas. Apesar disso, não houve esforço no sentido de acompanhar as atividades em tempo real, ou mesmo coordenar sua realização adequadamente.
Apesar disso, a Aeronáutica promoveu, após o acidente, o coordenador-geral da operação de lançamento, brigadeiro-do-ar Tiago Ribeiro, a vice-diretor do Deped (Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento), órgão hierarquicamente superior ao CTA. O adjunto do coordenador-geral, Mauro Dolinsky, segue exercendo cargo de chefia no IAE.
Caso não tivesse terminado em tragédia, seria a terceira tentativa de lançar o VLS-1. As duas outras, em 1997 e 1999, fracassaram. Nas ocasiões, o coordenador-geral também foi Tiago Ribeiro, que só chegou à base uma semana antes do acidente. Logo após a catástrofe, no ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu realizar novo lançamento até o final de seu mandato, em 2006.
O Ministério da Defesa, órgão governamental que encabeça a administração do projeto do VLS, deve anunciar o acerto de uma parceria com a Rússia para conduzir uma revisão crítica do lançador, por US$ 1 milhão, e cumprir a promessa presidencial.
As negociações com os russos não tiveram a participação da AEB (Agência Espacial Brasileira), entidade civil que supostamente deveria coordenar o programa espacial nacional.



Próximo Texto: Trecho: Segurança não tinha poder para impedir o acesso
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.