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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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A RAZÃO DOS SENTIMENTOS

Claudio Angelo
editor-assistente de Ciência

Do que são feitos os sentimentos? Como decompor e definir, por exemplo, o conteúdo da alegria? Se a pergunta parece complicada, um experimento mental pode dar uma ajuda: pense numa praia, num fim de tarde. Nenhuma nuvem no céu. Seu corpo está estendido na areia, suavemente aquecido pelo sol. Som de mar à frente, barulho de folhas ao vento atrás. Você se sente tão bem que começa a pensar em eventos prazerosos passados e a antecipar outros, futuros. Na sua mente, conflitos se amenizam, opostos deixam de se opor.
Para o filósofo holandês Benedictus Spinoza (1632-1677), você teria alcançado o estado de "perfeição maior", ápice da necessidade básica de todas as criaturas de prosperar na própria existência. O neurocientista português Antonio Damasio, que imaginou a cena descrita acima, tem uma outra palavra para isso: homeostase. Sentimentos nada mais são do que representações altamente elaboradas do estado de equilíbrio do organismo. Alegria, tristeza, empatia, orgulho, são todos, em maior ou menor medida, derivados de uma idéia que o cérebro faz do funcionamento do corpo. E, sim, existem áreas definidas no sistema nervoso onde essas representações são geradas.
A proposta está delineada em "Looking for Spinoza: Joy, Sorrow and the Feeling Brain" (Procurando Spinoza: alegria, tristeza e o cérebro que sente), mais recente e mais ousado livro do neurologista da Universidade de Iowa, lançado neste ano nos EUA. Nas suas obras anteriores -o best-seller "O Erro de Descartes" e "O Mistério da Consciência"-, Damasio se dedicou a buscar a base biológica das emoções e da consciência humana. Agora, ele tenta fechar o ciclo, arriscando que os sentimentos, o próprio espírito humano e, em última instância, Deus, são produtos da evolução da espécie e também habitam as ligações sinápticas.
Damasio sabe que a afirmação é forte e que vai causar mal-estar até mesmo entre cientistas. Não por acaso, o livro evoca Spinoza, o panteísta, filósofo excomungado em vida e banido em morte pelas heresias publicadas em sua obra a respeito da natureza humana e divina.
Em seus escritos, Spinoza igualou Deus à natureza, designando-o sob a famosa expressão "Deus sive natura" (Deus ou natureza), retirando a divindade de seu lugar e espalhando-a por toda parte, e propôs que a mente e o corpo são feitos de uma só substância. Provocou tanta fúria na sociedade, especialmente entre os judeus holandeses, que teve sua obra póstuma proibida. Nem seu cadáver escapou de ser roubado do túmulo.
A heresia de Damasio se volta a um das últimas fronteiras da neurociência. Enquanto a maioria dos neurologistas não se aperta em atribuir a áreas específicas do cérebro o controle sobre pensamentos e emoções -como medo e raiva-, os sentimentos parecem flutuar em algum lugar inespecífico, fluido, daquilo que se conhece de maneira não menos fluida como "mente". Resgatando a formulação do século 17 de Spinoza e traduzindo-a para a biologia do século 21, Damasio reafirma: corpo e mente são um só.
A escolha de Spinoza como personagem principal desse que está sendo considerado o livro mais pessoal de Damasio não é incidental: há mais coisas em comum entre ambos do que mera filosofia. Benedictus, que também era chamado de Baruch ou Bento, era filho de marranos, judeus portugueses que haviam fugido da recém-instalada Inquisição. Apesar de nascido em Amsterdã, Spinoza tinha como língua materna o português e publicou sua obra em línguas que ele confessou nunca chegar a dominar inteiramente, o holandês e o latim. O português Antonio, radicado há anos nos Estados Unidos, também é um exilado e publica suas obras numa língua estrangeira.
O que torna o holandês patrono não-reconhecido da neurobiologia, na visão de seu patrício, é a proposição, contida na terceira parte de sua "Ética", da necessidade, ou luta ("conatus", em latim) dos seres vivos para perseverar em ser, necessidade esta que acaba sendo a própria essência das criaturas.
O "conatus" de Damasio é a tendência do organismo a tentar funcionar da melhor maneira possível, evitando a dor e buscando o prazer.

Novo livro do neurologista português Antonio Damasio propõe base biológica para alegria, tristeza e religião

Antes que os freudianos de plantão gritem "eu sabia!", registre-se que os biólogos conhecem bem esse mecanismo há tempos. Ele está presente do mais insignificante paramécio até o homem, que gosta de se considerar o topo da evolução, e é chamado de homeostase. No paramécio, um ser de uma célula, a homeostase se reduz a trocas de íons e à detecção de sinais que avisem sobre condições do ambiente, comida ou predadores. Com os humanos a coisa é diferente. A evolução dotou a espécie de um organismo complexo e de um cérebro idem. Para sobreviver com o máximo de bem-estar dentro de uma estrutura social também complexa, os humanos desenvolveram as emoções, que conferem ao organismo a capacidade de responder de forma eficiente a diversas circunstâncias boas ou ruins para a vida. Combinando emoções, memórias passadas, imaginação e raciocínio veio um mecanismo posterior -os sentimentos-, que deu a seus portadores a capacidade de responder criativamente a uma gama quase infinita de ameaças e oportunidades.

Mapas do corpo
A função primária dos sentimentos, portanto, seria homeostática. E as regiões do cérebro nas quais eles são produzidos começam agora a ser identificadas, graças a técnicas de imageamento do sistema nervoso como ressonância magnética e tomografia por emissão de pósitrons. As candidatas mais fortes, até agora, são as áreas responsáveis pela produção de mapas do estado do corpo, como a ínsula e o córtex pré-frontal. Essas áreas recebem informações sobre o que acontece dentro e fora do organismo e elaboram o tempo todo representações de como vão as coisas. Claro, elas podem ser enganadas e produzir mapas falsos -é o que acontece quando se usa heroína, por exemplo. Podem ser destruídas por lesões cerebrais, como no caso dos pacientes com dano na área pré-frontal, que perdem a capacidade de sentir vergonha ou culpa.
Das representações do próprio corpo derivam também as representações de corpos alheios, ou a empatia, a capacidade de se colocar no lugar de alguém. E, segundo Damasio, daí surge o comportamento ético, que garante sobrevivência com bem-estar a todo o grupo.
A necessidade de autopreservação, ou o "conatus" spinozano, também entra em ação quando se confronta a realidade da morte e do sofrimento. "A perspectiva quebra o processo homeostático do observador", diz Damasio, que conclui serem os sistemas religiosos uma forma de restaurar esse equilíbrio. Spinoza se opõe à idéia de que a salvação venha por intermédio de um deus ou da imortalidade da alma; Damasio parece depositar no comportamento ético, aliado ao conhecimento científico, a responsabilidade por ela.
No esforço de unificar emoções, consciência e sentimentos sob a lupa da ciência, Damasio pode ser perdoado por eventuais atropelos. Apesar de deixar claro que essa é apenas a primeira aproximação do tema, professa que o importante é uma mudança de atitude em relação ao cérebro, não mais tão misterioso. Se sua obra terá o mesmo destino da de seu patrício, não se sabe. Mas que ele não diga que não foi avisado: no túmulo vazio de Spinoza, em Haia, uma inscrição latina alerta a quem estiver procurando pelo filósofo: "Cuidado".


Looking for Spinoza - Joy, Sorrow, and the Feeling Brain
355 págs., US$ 28 de Antonio Damasio. Harcourt

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados na Fnac (tel. 0/ xx/ 11/ 3097-0022) e na Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/ 533-2237).



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