São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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+Marcelo Leite

Freezers no corredor

Vânia e Marco Prado recriaram em roedores um defeito cognitivo social

Ojornalista que freqüenta laboratórios de cientistas brasileiros nas áreas de biomédicas e adjacências se espanta quando visita os de seus colegas que tiveram o mérito e a sorte de trabalhar num país rico, como os EUA. A primeira coisa que chama a atenção são os corredores desimpedidos. Nenhum freezer à vista.
Por certo há exceções tupiniquins. Alguns pesquisadores, também por mérito e/ou sorte (além de habilidade política), conquistam espaços amplos para produzir experimentos em condições minimamente dignas. Não precisam mover para fora do laboratório os freezers onde são armazenadas amostras biológicas.
Dois exemplos paulistanos vêm à mente. Um é o Centro de Estudos do Genoma Humano, capitaneado por Mayana Zatz (atual pró-reitora de Pesquisa da USP), Outro: o Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (Incor), comandado por José Eduardo Krieger. Corredores sem freezers à vista. Espaço não falta.
O mesmo se pode ver nas instalações conquistadas por brasileiros no exterior, como as de Miguel Nicolelis na Universidade Duke. Vá lá que em algumas salas seus liderados se apinhem em escrivaninhas minúsculas, abarrotadas de papéis, bolas de tênis, fotografias, canudos com pôsteres apresentados em congressos. A balbúrdia habitual de gente com muitas coisas na cabeça e pouco tempo para organizá-las fora dos artigos que têm de escrever de tempos em tempos.
A usina nicoleliana, que andava meio distante do noticiário, voltou a ele nesta semana. Um trabalho do grupo saiu no periódico "Journal of Neuroscience", relatando o papel do neurotransmissor dopamina no sono.
Espera-se que a descoberta lance alguma luz sobre a esquizofrenia, assim como o papel da dopamina no mal de Parkinson causou furor quando foi detectado. Reflexos culturais brilhantes da descoberta podem ser admirados em obras como o livro "Tempo de Despertar", de Oliver Sacks, o filme homônimo (1990) de Penny Marshall e a peça "Uma Espécie de Alasca", do Nobel de Literatura Harold Pinter.
Pouco mais de um mês atrás, outro artigo importante de brasileiros sobre um neurotransmissor havia sido publicado noutro periódico internacional respeitado, "Neuron". Vânia e Marco Prado, entre outros, conseguiram diminuir a eficiência de neurônios modificando geneticamente o nível de produção da acetilcolina em cérebros de camundongos.
Recriaram num animal, por essa via, uma deficiência cognitiva social: os roedores alterados tinham dificuldade para reconhecer outros aos quais já haviam sido apresentados. Supõe-se que seja similar à demência de portadores do mal de Alzheimer.
Os Prados produziram os camundongos geneticamente modificados na mesma Duke onde trabalha Nicolelis (com o qual mantêm colaboração, de resto). Agora dispõem de um financiamento de US$ 200 mil para modificar outros animais aqui mesmo, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde trabalha o casal.
Não têm previsão, contudo, de quando vão poder iniciar a produção de roedores engenheirados. Trata-se de uma ferramenta de pesquisa muito popular hoje em dia na área biomédica. É uma das maneiras mais diretas de descobrir a função de um gene, por exemplo -basta silenciá-lo e ver o que acontece com o bicho.
O motivo do adiamento na UFMG é prosaico: falta de espaço. Não têm onde abrigar novas colônias de camundongos. Mesmo sem conhecer seu laboratório, dá para imaginar corredores cheios de freezers.


MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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