São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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+ciência

O MANIPULADOR

Roberto Mitsuyoshi Hiramoto/Divulgação
O Toxoplasma gondii, causador da toxoplasmose



O parasita Toxoplasma gondii, um parente do causador da malária, nunca foi considerado um grande problema de saúde pública, mas, segundo alguns cientistas, isso pode mudar, se ficar comprovado que ele é capaz de alterar o comportamento de pessoas infectadas


James Randerson
da "New Scientist"

Você se surpreendeu agindo estranhamente nos últimos tempos? Está com problemas para se concentrar? Não culpe as madrugadas em claro ou a idade avançada -você pode estar à mercê de um parasita manipulador de mentes. Uma besta microscópica que repousa discretamente em seu cérebro pode estar exercendo uma forma sutil de controle mental, transformando-o em alguém um pouco diferente. Pode soar pouco convincente, mas estão aumentando as evidências de que o Toxoplasma gondii -causador da toxoplasmose e parente do parasita da malária- pode mudar seu modo de pensar. E você pode até já estar infectado, sem estar sabendo.
Por que você nunca ouviu falar disso antes? Porque a opinião médica insiste que o toxoplasma é quase sempre inofensivo, uma causa de preocupação apenas para mulheres grávidas e pessoas com sistema imunológico enfraquecido. A acusação de controle de mentes está longe de provada. Mas, se for verdadeira, o parasita pode se tornar um pesadelo de saúde pública da noite para o dia. O toxoplasma é um dos parasitas humanos mais comuns no mundo, infectando entre 30% e 60% da população global. Qualquer mamífero pode ser infectado, mas é apenas em gatos que o toxoplasma é capaz de se reproduzir sexualmente. Nele são liberados os ovos, que se espalham nas fezes felinas e, se acabarem caindo em solo apropriado, podem se manter dormentes por até 18 meses. Um rato ou um camundongo podem pegar a infecção a partir do solo contaminado e, caso um gato os mate e coma, o ciclo vital continua.
O perigo do toxoplasma às mulheres grávidas vem da capacidade do parasita de atravessar a placenta e causar um aborto ou danificar o cérebro do bebê. Mas esses casos são raros, com apenas um punhado por ano no Reino Unido e níveis similares em outros países desenvolvidos, como EUA e Austrália. Então, além de avisar futuras mães sobre a necessidade de limpar o lugar em que o gato da casa faz suas necessidades fisiológicas, lidar com o toxoplasma nunca foi uma prioridade de saúde pública nas nações mais ricas.
Fatores de risco podem variar entre países. A maioria das pessoas contrai o toxoplasma ao comer alimentos pouco cozidos -carnes de porco, vaca e ovelha podem todas carregar o parasita. Você também pode infectar-se com o toxoplasma ao ingerir acidentalmente resíduos de solo contaminado com fezes de gato. Portanto, sempre lave as mãos com cuidado depois de dar aquele trato no jardim. Na fase inicial da infecção, chamada toxoplasmose aguda, o parasita está presente no sangue. Tipicamente, ele causa pouco mais do que uma dor de cabeça e inflamação na garganta, embora em casos raros possa causar sérios danos à visão. Mesmo se você for ao médico, o caso é quase sempre diagnosticado como infecção viral. Após esse ataque inicial, o parasita se esconde do sistema imunológico (de defesa), formando cistos resistentes em tecidos nervosos e musculares, inclusive no cérebro -um estágio conhecido como toxoplasmose latente. Para a maioria das pessoas, esse desaparecimento é o fim da história. Uma vez que o parasita tenha sumido, ele quase nunca reaparece, a menos que seu sistema imunológico seja suprimido, como em vítimas de Aids, por exemplo. Você mantém a infecção latente pelo resto da vida -não há drogas que a curem ou vacinas que a previnam-, mas a sabedoria médica transmitida é a de que ela é inofensiva. Então, por que a preocupação? Bem, pesquisadores já sabem que o toxoplasma pode manipular roedores, seus "hospedeiros intermediários" naturais. Está estabelecido que ratos e camundongos se comportam de forma mais imprudente quando são infectados. Joanne Webster e sua equipe da Universidade de Oxford descobriram que os azarados roedores são mais ativos e menos temerosos de coisas novas. Eles até sentem atração por urina de gato. E uma pesquisa de Jaroslav Flegr e seus colaboradores da Universidade Carlos, em Praga, mostrou que os ratos têm tempo de reação aumentado. Tudo isso os torna muito mais vulneráveis a ataques felinos, exatamente o que o parasita quer. Afinal, o toxoplasma precisa infectar o gato (o "hospedeiro definitivo") para completar seu ciclo vital e espalhar seus genes.

Camundongos e homens
Mas poderiam homens e mulheres ser afetados da mesma maneira? Na verdade, o toxoplasma teria pouco incentivo evolutivo para influenciar nossas ações, uma vez que humanos pré-históricos provavelmente nunca foram comidos por grandes gatos numa frequência que fizesse a influência valer a pena. Mas cérebros humanos e de roedores são muito similares. Eles têm muitas partes similares e são controlados pelo mesmo conjunto de substâncias. Ninguém realmente sabe como o toxoplasma subverte o comportamento dos ratos, mas é provável que interaja com algum composto no cérebro. Existe a possibilidade de que a mesma substância esteja presente em nosso cérebro, também, tornando perfeitamente possível que os humanos experimentem efeitos colaterais. Flegr e sua equipe decidiram descobrir se isso estava realmente acontecendo. Eles conduziram uma série de testes em voluntários, alguns dos quais tinham uma infecção latente, conforme revelado por anticorpos para o toxoplasma detectados em seu sangue. Os resultados dos testes de personalidade foram complicados e mostraram confusas diferenças de gênero, mas os homens pareciam pelo menos reproduzir um aspecto da manipulação em roedores. Homens infectados tendiam a ser mais independentes e inclinados a quebrar regras, embora mulheres infectadas tendessem a ir na direção oposta. Poderiam os homens se tornar mais imprudentes, como os ratos, enquanto por alguma razão o composto de controle mental tivesse um efeito oposto nas mulheres? Nesse estágio, ainda não está claro. E, é claro, essa não é necessariamente uma relação causal -certas personalidades poderiam simplesmente ser mais vulneráveis à aquisição de infecções. Um teste para medir tempos de reação e duração de atenção deu resultados mais consistentes. Tanto homens quanto mulheres que tinham uma infecção latente levavam mais tempo para pressionar uma tecla de computador após um sinal num monitor. Pessoas sem a infecção levaram cerca de 250 milissegundos para reagir, mas as com infecção latente reagiram de maneira 8% mais lenta, em média. Além disso, os voluntários toxoplasma-positivos foram piorando conforme o experimento prosseguiu, sugerindo que eles tinham menor capacidade de manter a concentração. De novo, os efeitos em humanos parecem estar imitando os que ocorrem nos ratos. Até recentemente, poucas pessoas haviam levado os resultados de Flegr muito a sério. E se o toxoplasma causar alguns poucos estranhos resultados de laboratório, que diferença isso faria no mundo real? O que fez as pessoas se sentarem e prestarem atenção foi uma pesquisa publicada em agosto pela equipe de Flegr, que mostrava que os humanos com infecção latente têm probabilidade 2,7 vezes maior de se envolverem em acidentes de carro.

Direção perigosa
Os pesquisadores testaram amostras de sangue de 146 pessoas envolvidas em acidentes de automóvel em que eram ao menos parcialmente responsáveis e de outras 446 pessoas num grupo de controle. Havia mais portadores do toxoplasma no grupo dos acidentados. Não importava se o indivíduo era um motorista ou um pedestre, ter um parasita o torna mais perigoso para os usuários das vias públicas. De forma preocupante, surge uma ligação óbvia com os resultados dos tempos de reação de Flegr. E, caso o toxoplasma reduza os tempos de reação, que outros efeitos poderia ter? Poderia contribuir para outros acidentes de transporte, ou problemas industriais?
O trabalho de Flegr certamente ergueu algumas sobrancelhas no pequeno grupo de especialistas no campo, inclusive alguns representantes de saúde pública. Por exemplo, Richard Holliman, um pesquisador de parasitas na Hospital da Escola Médica St. George, em Londres, diz que, embora os resultados precisem ser reproduzidos, "as implicações poderiam ser enormes".
Tempos maiores de reação podem não ser o único efeito neurológico do toxoplasma. Outra idéia controversa é que a infecção latente poderia disparar algumas formas de esquizofrenia. Fuller Torrey, do Instituto de Pesquisa Médica Stanley, em Maryland (EUA), e sua equipe descobriram que esquizofrênicos parecem ser mais frequentemente donos de gatos e ter toxoplasmose latente. Além disso, drogas usadas para aliviar sintomas de esquizofrenia parecem danificar o parasita, ao menos nos tubos de ensaio. Torrey acredita que talvez seja por isso que as drogas funcionam.


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