São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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Ciência em Dia

O fim da Natureza Humana

Marcelo Leite
editor de Ciência

Há pouco mais de dois meses, prometi voltar ao último livro do polêmico pensador conservador americano Francis Fukuyama, aquele que anunciara uma década antes o fim da História com agá maiúsculo. A nova obra é "Our Posthuman Future" (Nosso Futuro Pós-Humano, editora Farrar, Straus and Giroux, 256 págs. US$ 25), um manifesto em defesa da natureza humana.
A primeira coisa que chama a atenção é a coincidência de argumentos no livro de Fukuyama e no de Jürgen Habermas, comentado na coluna de 29 de setembro, apesar das diferenças abissais entre os dois filósofos (muitos diriam que Habermas é conservador, mas não da forma como Fukuyama o é). A leitura dos livros revela que a coincidência é superficial, mas o simples fato de existir -ainda que só no plano formal- impressiona.
Ambos os autores acreditam que as biotecnologias, em particular a engenharia genética, têm ou logo terão o poder de fazer alterações no organismo humano com consequências para a igualdade entre os homens. Ao ter certas características escolhidas no plano dos genes por outrem, o ser humano engenheirado viria ao mundo numa condição moral "sui generis", literalmente: diferiria de todos os indivíduos da espécie, cujas dotações genéticas são frutos do acaso.
Assim o formula Fukuyama, na típica prosa do conservador norte-americano: "A igualdade política entronizada na Declaração da Independência repousa sobre o fato empírico da igualdade humana natural. Variamos grandemente como indivíduos e pela cultura, mas partilhamos uma humanidade comum que permite a cada ser humano comunicar-se e estabelecer uma relação moral potencialmente com todos os outros seres humanos no planeta".
O melhor do livro desigual de Fukuyama é sua idéia de que a biotecnologia nem precisa entregar a prometida reengenharia genética do ser humano para que sua natureza se veja ameaçada. Isso já estaria ocorrendo por meio da neurofarmacologia, por exemplo, e das admiráveis novas drogas como Prozac e Ritalin. Para ele, essa revolução aqui e agora anteciparia três tendências abomináveis que presume na engenharia genética.
A primeira é um desejo das pessoas comuns de medicalizar/naturalizar tanto quanto possível seu próprio comportamento (e com isso livrar-se da responsabilidade individual). A segunda, a pressão de interesses econômicos da indústria fármaco-biotecnológica e do setor de serviços sociomédicos (profissionais de saúde, professores, psicólogos etc.), para os quais seria mais fácil utilizar atalhos biológicos para abordar nos desvios de comportamento. Por fim, a tendência de expandir o domínio terapêutico, incluindo um número cada vez maior de condições entre as patológicas.
Tudo isso, para Fukuyama, já está afetando a forma como as pessoas se relacionam entre si e até mesmo como elas encaram a validade e a extensão dos direitos humanos. Ele tem alguma razão.
Nem por isso ele e Habermas estão dizendo a mesma coisa. Ocorre que, para o filósofo alemão, o nascimento biológico apenas equipa a pessoa com as faculdades necessárias para adentrar o universo da linguagem e da sociedade, onde ocorre a verdadeira ação. Pode-se dizer que, desse ponto de vista, a natureza humana é algo que se realiza historicamente.
Já Fukuyama reza pelo catecismo sociobiológico, que concebe a Natureza Humana (com ene e agá maiúsculos) como uma essência moral, que cumpre preservar da ameaça de corrupção representada pelas biotecnologias.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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