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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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OUTRORA UM SÍMBOLO DE PIONEIRISMO E INOVAÇÃO, HOJE A NASA, AGÊNCIA ESPACIAL AMERICANA, É COMPOSTA POR UM ARRANJO POUCO ELEGANTE DE TERCEIRIZAÇÃO E BUROCRACIA

O ABALO DO GIGANTE

Nasa
Foguete Saturno-5, que impulsionou a Apollo-11 à Lua em 69


James Glanz
Edward Wong
William J. Broad
do "The New York Times"

Nas primeiras horas de 1º de fevereiro de 1958, William Pickering, diretor do laboratório que preparou a resposta dos EUA ao Sputnik, estava esperando a confirmação de uma estação de monitoramento na Califórnia de que sua nave, o primeiro satélite americano, tinha completado uma volta em torno da Terra.
Dois ciensitas esperaram com ele num escritório do Pentágono -Wernher von Braun, o ex-chefe do programa de foguetes nazista que se tornou um inovador na indústria americana, e James Van Allen, um brilhante e jovem astrônomo. Levou apenas três meses para que eles atingissem o feito marcante da União Soviética lançando um foguete de quatro estágios atolado de equipamentos sensores para o espaço.
Quando a confirmação finalmente chegou, os três foram arrastados pelo Potomac até Washington, onde foram recebidos por uma multidão de repórteres e fotógrafos ao levantarem uma réplica do foguete sobre suas cabeças como um troféu gigante.
A nação estava eletrizada, a corrida espacial havia começado, e as leituras dos instrumentos de Van Allen iriam revolucionar o entendimento científico da Terra e do Sistema Solar. Meses depois, o Congresso declarou que o esforço seria conduzido por uma nova entidade federal, a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (Nasa). Era o tipo de triunfo, dizem muitos cientistas, que a Nasa de hoje -com uma base técnica em declínio, um conjunto erodido de talento científico e de engenharia e cada vez menos patentes e estudos notáveis- não seria capaz de obter.
Por mais de três décadas, a Nasa desafiou todas as probabilidades se tornar uma burocracia multibilionária com dezenas de milhares de gerentes, cientistas, engenheiros e técnicos, ainda de alguma forma se mantendo fiel à audácia entoxicante e à mestria técnica que lhe deram vida. Os jovens inovadores da Nasa não só aterrissaram homens na Lua e exploraram o Sistema Solar, enviando sondas para Vênus, Marte e Júpiter e visitando todos os planetas exteriores exceto Plutão. Juntos, eles montaram e mantiveram um repositório impressionante de talento científico e técnico.
Hoje, entretanto, a Nasa é dominada não por cientistas e engenheiros que pensam grande, mas por administradores técnicos que dependem largamente de contratados externos que foram eles mesmos perturbados por compactação, cortes e tempos difíceis na economia.
Como resultado, os pesquisadores da Nasa estão produzindo muito menos patentes do que o fizeram em anos anteriores, e houve uma recente queda em estudos também. Outros cientistas, muitos dos quais já questionavam o valor do programa do ônibus espacial desde o início, estão agora surpresos pela falta de sofisticação científica exigida pelos engenheiros da Nasa encarregados de explicar o desastre do Columbia publicamente. "Houve uma queda constante na competência e na sensação de que você está realmente lidando com colegas de ciência", disse Van Allen, que, com seu grupo na Universidade de Iowa, tem enviado instrumentos em missões com a Nasa ao longo das últimas décadas.

Terceirização nociva
A confiança em empresas terceirizadas deixou pessoal dos centros da Nasa com pouca experiência prática. "Eles não sabem realmente o que está acontecendo", disse Van Allen. "Eles sabem o que precisam fazer, num sentido estreito, no dia-a-dia." Daniel Baker, que liderou os laboratórios de ciência espacial no Centro Espacial Goddard de 1987 a 1994 e agora é diretor de um laboratório na Universidade do Colorado, disse que nos anos 90, quando a Nasa cortou alguns dos últimos programas internos que davam a jovens engenheiros a chance de construir satélites eles mesmos, o declínio técnico acelerou. "Acho que é desastroso", disse Baker. "A Nasa perdeu alguns de seus nervos, talvez seu senso de propósito." Os cientistas dizem que a agência se contaminou por uma cultura de serviço público, com suas raízes em regras burocráticas, cobertas por uma política contra riscos que permeou a Nasa após a explosão do Challenger, em 1986. Como resultado, está mais difícil atrair jovens talentosos e ambiciosos para a agência. "Os líderes envelhecidos da Nasa de hoje vieram para esse empreendimento com estrelas em seus olhos", disse Bruce C. Murray, geólogo do Instituto de Tecnologia da Califórnia que dirigiu o Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) da Nasa de 1976 a 1982. "Não é o caso agora." Com os gastos da agência reduzidos de US$ 5,9 bilhões anuais em 1966 para US$ 3,4 bilhões em 1971 e US$ 3,3 bilhões em 1974, com o fim do programa Apollo, a Nasa iniciou um programa de "redução de mão-de-obra" que mudou sua personalidade. Pelos anos 1990, entretanto, a privatização se tornou uma palavra potente. Em 1995, duas grandes empreiteiras da Nasa, a Boeing e a Lockheed Martin, formaram um consórcio chamado de United Space Alliance, e a Nasa deu a ele vasta responsabilidade pela operação diária do programa do ônibus espacial. O consórcio tem um papel similar com a ISS (Estação Espacial Internacional). Um estudo do programa do ônibus espacial financiado pela Nasa e concluído em dezembro de 2002 mostrou que 92% do dinheiro gasto nos ônibus ia para empreiteiras. Mas as empreiteiras da Nasa têm seus próprios problemas. Por exemplo, na Instalação de Montagem Michoud, em Nova Orleans, de propriedade da Nasa e gerida pela Lockheed, a maioria dos contratados tem mais de 20 anos de experiência, enquanto uns poucos foram contratados mais recentemente. Os funcionários dizem que há um "gap" etário -15 anos ou mais- entre os trabalhadores mais antigos e os mais novos, porque muitos trabalhadores entre uma ponta e outra teriam sido eliminados em ondas de cortes. "O todo da Nasa como entidade tem muita gente que quer se aposentar", disse James Lemann, 44, ex-funcionário da Michoud. "Se você está constantemente cortando os novos contratados e mantendo os velhos que vão se aposentar, você chegará a um ponto em que não terá ninguém para fazer o serviço." Os cortes de orçamento na Nasa e em suas empreiteiras aeroespaciais estão longe de ser a única explicação para o envehecimento e declínio da competência técnica no programa espacial. O fim da Guerra Fria deixou o programa sem o apelo de competir com a União Soviética, uma rivalidade que alimentou o impulso americano de ir ao espaço em primeiro lugar. E poucos cientistas fora da Nasa têm algo de bom a dizer sobre o ônibus espacial, que eles afirmam tomar dinheiro de pesquisas que poderiam ser feitas a custo menor com foguetes não-reutilizáveis.

Programa injustificável
"Não há nenhuma ciência lá fora que possa começar a justificar o custo", disse Robert L. Park, um físico da Universidade de Maryland e também um membro da Sociedade Física Americana, uma organização com 42 mil físicos no mundo todo. Park apontou que o orçamento combinado da Nasa para o ônibus e para a estação espacial era mais do que o orçamento de US$ 5 bilhões para a Fundação Nacional de Ciência, que financia cerca de 20 mil bolsas de pesquisa todo ano, resultando em dezenas de milhares de estudos científicos publicados. Por contraste, a ciência no ônibus espacial produz uma pequena quantidade de publicações em áreas como crescimento de cristais e desenvolvimento embrionário, que funcionam melhor num ambiente sem peso. Defensores do programa acreditam que o desafio do vôo espacial humano justifica sozinho o custo, mas agora o ônibus espacial é usado principalmente para levar material de construção e outros suprimentos para a estação espacial, uma missão que muitos jovens cientistas consideram menos que atraente. Quando os EUA escolheram o ônibus espacial sobre a continuada exploração do espaço, a Nasa perdeu muito de seu apelo com jovens pesquisadores, disse George Gleghorn, um membro da Academia Nacional de Engenharia e ex-engenheiro-chefe na divisão espacial da TWR, uma empreiteira aeroespacial. "O produto que você obtém, num sentido, é o que você estabelece como meta", disse Gleghorn, que até o ano passado era membro do Painel Consultivo de Segurança Aeroespacial da Nasa. "Não acho que nos comparamos aos Van Allens e Von Karmans", disse, em referência a Theodore von Karman, o engenheiro que fundou o JPL. A falta de apelo é refletida pelo perfil etário na Nasa e na indústria aeroespacial como um todo. A idade média dos funcionários do consórcio United Space Alliance subiu de 44,5 para 45,3 desde que foi formado, em 1996, e a porcentagem de funcionários com menos de 35 anos caiu para 11% na Nasa, de 28% em 1993. As implicações desses números são dolorosas, dizem especialistas que apontam uma erosão nas habilidades técnicas da Nasa. Por exemplo, o Instituto para Informação Científica (ISI), companhia da Filadélfia que acompanha as publicações científicas e seu impacto, recentemente fez um estudo que mostrou que a porcentagem de estudos da Nasa está caindo há uma década. Em anos recentes, o número absoluto também caiu.

Patentes em queda
O mesmo ritmo é visto nas patentes da Nasa, que são uma medida da inventividade técnica. A CHI Research, de Haddon Heights, Nova Jersey, que acompanha índices de ciência, disse que as patentes da Nasa caíram na última década. A agência requisitou 155 patentes em 1992 e 89 em 2002, a companhia informou. Em comparação, a IBM recebeu 3.334 patentes no ano passado.
A mudança que esses números implicam não é sutil, disse Seymour C. Himmel, um membro aposentado da Nasa que recentemente deixou o Painel Consultivo de Segurança Aeroespacial da agência.
Himmel recordou uma visita que o painel de segurança fez ao centro da Nasa, em que os empregados descreviam seu serviço. "Tudo que eles falavam era de contratos e grana", disse. "Eu fiquei tão furioso. Eu disse: "Seu trabalho é conhecimento!" "
O que os cientistas que lidam com a Nasa parecem achar especialmente intrigante é a evidência de que alguns afiliados da agência mantiveram sua vantagem técnica, sugerindo que a decadência não é inevitável.
Muitos apontam o JPL, que é afiliado ao Caltech, como um lugar em que a inovação ainda vive. Mas Pickering, um dos três cientistas que seguraram o foguete após o primeiro lançamento bem-sucedido, disse que a decisão do laboratório em manter seus elos universitários causou atritos.
"Todo o resto era serviço público, e a burocracia da Nasa não soube muito bem como lidar com isso", disse Pickering. "E eu acho que houve um pouco de uma divisão de cultura."
Embora o laboratório tenha perdido duas de suas sondas marcianas no final dos anos 1990 -erros técnicos de uma empreiteira foram as causas- também navegaram sondas relativamente baratas que orbitaram e aterrissaram no planeta. O laboratório segue sendo um centro de excelência em áreas que vão desde conceitos de propulsão futurista até meios de comunicação no espaço profundo.
"De minhas observações por todos esses anos", disse Barles Barth, professor-emérito de ciências planetárias e astrofísicas da Universidade do Colorado, "eu acho que eles se deram bem em continuarem a ser inovadores e a desenvolver idéias técnicas."
E, quando a Nasa trabalha junto com as mentes livre-pensantes da academia em outras áreas de suas operações, os resultados podem ser animadores. Poucos dias atrás, um satélite da Nasa chamado Wilkinson Microwave Anisotropy Probe, desenvolvido em colaboração intensa com Princeton, forneceu as mais antigas imagens da infância do Universo, dados que vão formar a base de muitas áreas da cosmologia e da astrofísica nos próximos anos.
David Spergel, um físico de Princeton que trabalhou com uma equipe do Centro de Vôo Espacial Goddard no projeto, disse que ainda havia centros de excelência lá que poderiam servir de modelo para a agência toda.
"Em algumas áreas", Spergel disse, "a turma do Goddard e do JPL é a melhor do mundo -o tipo de gente que as universidades e a indústria adorariam ter."


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