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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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Ciência em Dia

Questão de genes e princípios

Marcelo Leite
editor de Ciência

Existem duas maneiras principais de enfrentar e tentar resolver o dilema ético envolvido na concessão de patentes -direitos de propriedade- sobre genes humanos. A primeira se baseia em princípios e almeja resolver o dilema de maneira independente dos casos concretos. A outra deixa de lado a generalidade dos princípios e busca solucionar a questão em termos pragmáticos, aquilatando prós e contras de situações concretas.
Para tornar a coisa um pouco menos abstrata, considere-se o exemplo de uma patente obtida pela Myriad Genetics (de Salt Lake City, Utah, EUA). A proteção foi dada para trechos dos genes BRCA1 e BRCA2, ligados a cânceres de mama.
O caso é complicado, em primeiro lugar, porque a empresa não detém direitos sobre a totalidade da sequência dos dois genes. Depois, porque os trechos protegidos não são as versões mais comuns, "normais", dos genes, mas sequências com mutações que aumentam a probabilidade de uma mulher desenvolver tumores mamários e ovarianos. Além disso, a patente cobre seu emprego em testes diagnósticos, como o que a Myriad comercializa por US$ 2.300.
Embora a presença das mutações numa mulher não a leve inevitavelmente a desenvolver tumores, um estudo na respeitada revista médica norte-americana "The New England Journal of Medicine" indica que, se as mutações forem diagnosticadas em mulheres que já têm filhos e seus ovários forem extraídos, desaparece o risco aumentado de tumor ovariano e cai 53% o de tumor mamário.
Do ponto de vista exclusivo dos princípios, a patente de genes é problemática, mesmo dentro dos parâmetros da propriedade intelectual. Isso porque é consenso internacional, há décadas, que esse tipo de proteção só deve ser concedido quando estiverem envolvidos ineditismo, invenção e utilidade.
O argumento tradicional é que um gene é algo dado na natureza, assim como qualquer elemento químico (oxigênio, por exemplo). Pode-se descrever pela primeira vez um gene ou um elemento, e até mesmo indicar sua utilidade (como num teste de diagnóstico genético ou num processo industrial), mas só uma lógica distorcida poderia fazer passar tal descrição como invenção. O fato de serem genes mutados raros, e não suas ocorrências "naturais", não muda o fato de que eles são "inventados" pela própria natureza (ainda que pelo acaso).
Distorcida ou não, é essa a lógica que tem prevalecido no país da Myriad e do pragmatismo, os EUA (a legislação brasileira, de seu lado, proíbe esse tipo de proteção). A racionalidade por trás da concessão de patentes para genes desse tipo, mesmo em contradição substancial com o princípio da invenção, decorre do seguinte raciocínio: o que se patenteia não é a matéria do gene, mas sua informação, fruto de atividade humana criativa; mais ainda, sem o incentivo econômico da patente, empresas como a Myriad não investiriam milhões para identificar as mutações e criar testes.
É um ponto de vista discutível, ainda que respeitável. Dispostos a discuti-lo e também a desrespeitá-lo estão vários hospitais da Europa e a Província de Ontário, no Canadá, que desenvolveram seus próprios testes baseados nas mesmas sequências "possuídas" pela Myriad e estão defendendo nos tribunais seu direito de fazê-lo.
Como se vê, nem mesmo o pragmatismo pode resolver sem conflitos questões que, no fundo, são mesmo de princípio.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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