São Paulo, sábado, 16 de julho de 2005

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AIDS

Para americano co-descobridor do HIV, governo brasileiro pode fazer mais mal que bem no combate mundial à doença

Robert Gallo questiona quebra de patente

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

"Meu conselho seria: vá devagar. Não finque as esporas demais", sentencia o americano Robert Gallo, diretor do Instituto de Virologia Humana da Universidade de Maryland (EUA), sobre a polêmica envolvendo o governo brasileiro e o laboratório Abbott, criador do Kaletra, medicamento contra o HIV, o vírus da Aids. Segundo ele, uma possível quebra de patente por parte do Brasil correria o risco de causar mais mal do que bem ao país e ao mundo.
A opinião vem do homem que, ao lado do francês Luc Montagnier, então no Instituto Pasteur, descobriu o HIV e criou um teste para detectá-lo, na primeira metade dos anos 1980. A descoberta foi cercada de polêmica -muitos acusaram Gallo de se apropriar dos achados de Montagnier, e houve briga feia entre os governos francês e americano pela patente do teste. No fim, os rendimentos foram repartidos, e a dupla hoje colabora de vez em quando.
Antes de sua quarta visita ao Brasil, para participar de uma conferência sobre Aids em São Paulo, Gallo, 68, conversou com a Folha. Além de recomendar cautela sobre a questão patentária, ele ataca a idéia de que o vírus possa se transformar num superpatógeno, comenta as perspectivas de uma vacina e pede que uma rede internacional passe a mapear novos vírus -o único jeito de prevenir epidemias.
 

Folha - O sr. esteve diversas vezes no Brasil e conhece bem os problemas com a disponibilidade e o custo dos remédios contra a Aids no mundo. Como vê a estratégia do governo brasileiro de ameaçar a quebra de patentes de medicamentos como o Kaletra, da Abbot?
Gallo -
Vamos tentar ver isso sem qualquer viés, sem superioridade moral ou moralização, e olhar para a realidade. Desse ponto de vista, não acho que seja uma posição de negociação tão ruim. Mas se você levar isso ao extremo, o Brasil vai perder.
O que quero dizer com perder? Vamos fingir que eu sou o Brasil. Eu digo: "Puxa, tenho um monte de gente pobre infectada, por que devo seguir essas regras? Eu não inventei as patentes. Quero ajudar as pessoas, é boa política, quem é que vai discutir comigo?". Parece bom.
Agora, vamos dizer que você é a Abbott. Que, aliás, você é um bom homem -para ser honesto, esse estereótipo de "oh, grandes companhias, devem ser uns bandidos" não é real. Normalmente, são pessoas boas, bastante dedicadas, que querem fazer coisas boas e não apenas ganhar dinheiro. E uma das coisas boas que eles precisam fazer é zelar pelo pequeno investidor também. Digamos que você é um brasileiro de classe média-baixa que investiu suas economias da vida inteira na Abbott. Pessoas desse tipo existem.
O que acontece se todo mundo começar a fazer como o governo brasileiro quer fazer? Acabou. E a Abbott também tem de pensar em quanto dinheiro ela investiu para desenvolver o remédio. Se dermos a eles o benefício da dúvida, de que eles estão baixando o máximo que conseguem...
Digamos que eles gastem US$ 1 bilhão de dólares para desenvolver um medicamento, que o processo exija 15 anos de pesquisa, que você consiga uma droga para cada 20 testadas, como eles afirmam. Se você faz tudo isso e não consegue vender sua droga porque todo mundo quebrou a patente, você desiste, não é?
Vamos dizer que uma nova epidemia apareça no Brasil, e a Abbott tenha a capacidade de desenvolver a coisa certa para enfrentá-la. Se eu sou a Abbott, para que me daria ao trabalho? Quero dizer, essas são decisões complexas. Não basta dizer "vamos dar os remédios a eles".
Se seu governo sabe que a Abbot poderia fazer muito mais, eu ficaria do lado dele. Mas meu conselho seria: vá devagar. Não finque as esporas demais.

Folha - Não é um mero caso de bem contra o mal.
Gallo -
É exatamente esse o meu ponto. Mas deixe-me dar uma perspectiva positiva sobre esse tema. Minha impressão é que seria um alívio para muitas empresas que a produção de medicamentos para os países em desenvolvimento fosse assumida por esses países.

Folha - Por quê?
Gallo -
Porque é um peso terrível produzir remédios em todo lugar e tentar vendê-los ao menor preço possível, e você ainda tem de ser responsável por educação da população... olhe, vamos pegar o exemplo da Pfizer, uma das maiores empresas do ramo nos Estados Unidos. Eles construíram centros educativos e de pesquisa clínica em Uganda. Fizeram isso também em vários outros países africanos. Imagine o dinheiro que isso deve estar custando! Porque, afinal, usar esses remédios é difícil. Exige treinamento. É muito complicado, bem além do que algumas pessoas em órgãos internacionais acham que é -essa coisa de jogar os remédios na praia, apertar as mãos e ir para casa. Eles ficaram chocados quando dissemos: "Estão doidos? Desse jeito vamos criar cepas resistentes a múltiplas drogas na África toda!".

Folha - Como o sr. avaliaria a diversidade de vírus HIV existente hoje? Qual a importância do aparecimento de cepas resistentes a múltiplas drogas? Neste ano, a equipe de David Ho, do Centro Aaron Diamond de Pesquisa do Câncer, em Nova York, disse ter encontrado uma cepa especialmente virulenta e resistente a três dos quatro tipos conhecidos de droga...
Gallo -
Essa história do David Ho é bobagem pura. Não havia nem um fiapo de evidência de que se tratasse de um supervírus. Eles gostam de fazer coisas para publicidade, fazem isso desde o berço e acho que está na hora de pararem.
Já conhecemos vírus com resistência a todos [fala com ênfase] os tipos de droga. Das pessoas que chegam à nossa clínica, 50% carregam vírus resistentes a múltiplas drogas.
O que David Ho e seus colegas conseguiram foi assustar o pessoal em Nova York. Para começar, esse cara [o homossexual portador do vírus] não é multirresistente, uma vez que está sendo tratado com sucesso agora.
Segundo, se fosse resistente, isso não é notícia, tem no mundo inteiro. O que ninguém lembrou de dizer nesse anúncio idiota é que virulento num indivíduo provavelmente quer dizer inócuo na população -esses vírus muito agressivos normalmente não são bons de transmissão. A comunidade científica aqui nos EUA está cheia deles. Passaram dos limites.

Folha - O senhor mencionou novas estratégias para tentar vencer a resistência do HIV. Quais são as mais promissoras?
Gallo -
Nós já fizemos grandes avanços na compreensão de como o HIV entra nas células. O grande salto seria a descoberta de novas classes de drogas capazes de impedir o vírus de fazer isso, bloqueando o receptor de quimocina CCR5 [uma das fechaduras químicas às quais o patógeno precisa se ligar para atravessar a membrana das células].

Folha - Como é que o sr. imagina que o vírus vá evoluir daqui para a frente? A resistência deve se tornar um problema insustentável?
Gallo -
É um problema sério nos Estados Unidos, na Europa, onde quer que as drogas tenham sido usadas. Mas esses mutantes resistentes não são supervírus; de fato, em geral são menos infecciosos. Não vejo nenhum monstro surgindo. Você pode fazer com que os leões fiquem um pouquinho diferentes, mas não dá para transformar leão em girafa.
Há algumas coisas que o HIV precisa manter para conseguir afetar o sistema imune [de defesa do organismo], e ao fazer isso é muito improvável que ele passe a ser transmitido casualmente.

Folha - E as estratégias de vacinas, quais são mais promissoras?
Gallo -
Sempre se pode pensar em dois tipos de vacinas, as terapêuticas e as preventivas. As terapêuticas podem ser usadas para fortalecer o sistema imune de quem tem a doença, e algumas conseguiram sucesso modesto. Quanto às preventivas, ninguém chegou à que todo mundo está esperando -a que ganharia a Copa do Mundo, no seu país.
As vacinas que estão sendo testadas agora foram projetadas de forma racional, mas é improvável que sejam muito eficazes. Eu acredito -alguns cientistas discordam de mim, mas prefiro confiar nos meus instintos- que entender cientificamente como o HIV entra nas células é o fator crítico para uma boa vacina.
O nosso instituto está muito comprometido com essa linha de pesquisa. Temos uma vacina candidata com essas propriedades sendo desenvolvida aqui. Esperamos que em três ou quatro anos consigamos verificar se ela é capaz de funcionar. Conseguimos desenvolver anticorpos capazes de neutralizar os diferentes tipos de HIV, o que é um avanço significativo.

Folha - Essa diversidade do vírus é o xis da questão, certo? Se você não consegue cobri-la, não há como criar uma boa vacina.
Gallo -
Não, acho que a diversidade nós conseguimos enfrentar. O que mais me incomoda é o fato de o HIV ser um retrovírus [com material genético na forma de RNA, e não de DNA]. Como retrovírus, ele se integra [criando trechos de DNA dentro das células do doente, o que torna sua multiplicação perpétua]. Ou seja, o único jeito é barrar a infecção na porta. Talvez você tenha de tentar imunização esterilizante, o que significa bloqueio total da infecção. Ninguém jamais conseguiu isso na história da vacinologia.

Folha - O sr. acredita que as lições aprendidas com a Aids vão ajudar o planeta a lidar com novas doenças emergentes?
Gallo -
É claro que isso tem estado muito mais na cabeça das pessoas. Mas acho que ainda falta um ingrediente. Quando nós descobrimos a causa da Aids, não havia ninguém designado com essa tarefa; a coisa aconteceu meio por acidente. Não dá para esperar que uma instituição como os CDCs [Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA] conheça todos os vírus do mundo. Minha sugestão, então, é que nós construamos centros de excelência em virologia nos Estados Unidos, e também na Europa e no Japão.
Cada um deles poderia cobrir uma ou duas categorias de vírus e ficaria responsável por epidemiologia e vigilância. Esses centros deveriam ter relação próxima com pelo menos dois centros num país em desenvolvimento. Uma coisa está clara: aprendemos uma lição importante. A arrogância em relação às doenças infecciosas está encerrada, e acho que para sempre.

Folha - A polêmica envolvendo o sr. e o pesquisador francês Luc Montagnier em relação à "paternidade" do HIV ficou famosa, com acusações de má-fé de ambos os lados. Qual o legado dessa briga?
Gallo -
Não acho que exista algum legado, fora o fato de que nós dois perdemos muito tempo e de que alguns dos meus colaboradores passaram por coisas totalmente desnecessárias. Foi uma briga entre governos e instituições, e se voltou contra mim como estratégia de advogados baseados em, acredite ou não, Nova York, que estavam representando os franceses. A realidade é que, em termos de opinião científica, nunca houve desentendimento entre nós. E raiva só houve durante um ano.
Acho que saí da faculdade e do meu laboratório completamente despreparado para lidar com o mundo da grande ciência e da política. Hoje, parece-me que um cientista que vai trabalhar com pesquisa de alto nível precisa conhecer um pouco de política, um pouco de legislação e sobre como patentes funcionam.


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