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AIDS
Para americano co-descobridor do HIV, governo brasileiro pode fazer mais mal que bem no combate mundial à doença
Robert Gallo questiona quebra de patente
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
"Meu conselho seria: vá devagar. Não finque as esporas demais", sentencia o americano Robert Gallo, diretor do Instituto de
Virologia Humana da Universidade de Maryland (EUA), sobre a
polêmica envolvendo o governo
brasileiro e o laboratório Abbott,
criador do Kaletra, medicamento
contra o HIV, o vírus da Aids. Segundo ele, uma possível quebra
de patente por parte do Brasil correria o risco de causar mais mal
do que bem ao país e ao mundo.
A opinião vem do homem que,
ao lado do francês Luc Montagnier, então no Instituto Pasteur,
descobriu o HIV e criou um teste
para detectá-lo, na primeira metade dos anos 1980. A descoberta
foi cercada de polêmica -muitos
acusaram Gallo de se apropriar
dos achados de Montagnier, e
houve briga feia entre os governos
francês e americano pela patente
do teste. No fim, os rendimentos
foram repartidos, e a dupla hoje
colabora de vez em quando.
Antes de sua quarta visita ao
Brasil, para participar de uma
conferência sobre Aids em São
Paulo, Gallo, 68, conversou com a
Folha. Além de recomendar cautela sobre a questão patentária, ele
ataca a idéia de que o vírus possa
se transformar num superpatógeno, comenta as perspectivas de
uma vacina e pede que uma rede
internacional passe a mapear novos vírus -o único jeito de prevenir epidemias.
Folha - O sr. esteve diversas vezes
no Brasil e conhece bem os problemas com a disponibilidade e o custo dos remédios contra a Aids no
mundo. Como vê a
estratégia do governo brasileiro de
ameaçar a quebra
de patentes de medicamentos como o
Kaletra, da Abbot?
Gallo - Vamos
tentar ver isso sem
qualquer viés, sem
superioridade
moral ou moralização, e olhar para
a realidade. Desse
ponto de vista,
não acho que seja
uma posição de
negociação tão
ruim. Mas se você
levar isso ao extremo, o Brasil vai
perder.
O que quero dizer com perder?
Vamos fingir que
eu sou o Brasil. Eu
digo: "Puxa, tenho
um monte de gente pobre infectada, por que devo seguir essas regras? Eu não inventei as patentes.
Quero ajudar as pessoas, é boa
política, quem é que vai discutir
comigo?". Parece bom.
Agora, vamos dizer que você é a
Abbott. Que, aliás, você é um bom
homem -para ser honesto, esse
estereótipo de "oh, grandes companhias, devem ser uns bandidos" não é real. Normalmente,
são pessoas boas, bastante dedicadas, que querem fazer coisas
boas e não apenas ganhar dinheiro. E uma das coisas boas que eles
precisam fazer é zelar pelo pequeno investidor também. Digamos
que você é um brasileiro de classe
média-baixa que investiu suas
economias da vida inteira na Abbott. Pessoas desse tipo existem.
O que acontece se todo mundo
começar a fazer como o governo
brasileiro quer fazer? Acabou. E a
Abbott também tem de pensar
em quanto dinheiro ela investiu
para desenvolver o remédio. Se
dermos a eles o benefício da dúvida, de que eles estão baixando o
máximo que conseguem...
Digamos que eles gastem US$ 1
bilhão de dólares para desenvolver um medicamento, que o processo exija 15 anos de pesquisa,
que você consiga uma droga para
cada 20 testadas, como eles afirmam. Se você faz tudo isso e não
consegue vender sua droga porque todo mundo quebrou a patente, você desiste, não é?
Vamos dizer que uma nova epidemia apareça no Brasil, e a Abbott tenha a capacidade de desenvolver a coisa certa para enfrentá-la. Se eu sou a Abbott, para que
me daria ao trabalho? Quero dizer, essas são decisões complexas.
Não basta dizer "vamos dar os remédios a eles".
Se seu governo sabe que a Abbot poderia fazer muito mais, eu
ficaria do lado dele. Mas meu conselho seria: vá devagar. Não finque as esporas demais.
Folha - Não é um mero caso de
bem contra o mal.
Gallo - É exatamente esse o meu
ponto. Mas deixe-me dar uma
perspectiva positiva sobre esse tema. Minha impressão é que seria
um alívio para
muitas empresas
que a produção de
medicamentos
para os países em
desenvolvimento
fosse assumida
por esses países.
Folha - Por quê?
Gallo - Porque é
um peso terrível
produzir remédios em todo lugar e tentar vendê-los ao menor
preço possível, e
você ainda tem de
ser responsável
por educação da
população... olhe,
vamos pegar o
exemplo da Pfizer, uma das
maiores empresas
do ramo nos Estados Unidos. Eles
construíram centros educativos e de pesquisa clínica em Uganda. Fizeram isso
também em vários outros países
africanos. Imagine o dinheiro que
isso deve estar custando! Porque,
afinal, usar esses remédios é difícil. Exige treinamento. É muito
complicado, bem além do que algumas pessoas em órgãos internacionais acham que é -essa coisa de jogar os remédios na praia,
apertar as mãos e ir para casa. Eles
ficaram chocados quando dissemos: "Estão doidos? Desse jeito
vamos criar cepas resistentes a
múltiplas drogas na África toda!".
Folha - Como o sr. avaliaria a diversidade de vírus HIV existente
hoje? Qual a importância do aparecimento de cepas resistentes a
múltiplas drogas? Neste ano, a
equipe de David Ho, do Centro Aaron Diamond de Pesquisa do Câncer, em Nova York, disse ter encontrado uma cepa especialmente virulenta e resistente a três dos quatro tipos conhecidos de droga...
Gallo -Essa história do David Ho
é bobagem pura. Não havia nem
um fiapo de evidência de que se
tratasse de um supervírus. Eles
gostam de fazer coisas para publicidade, fazem isso desde o berço e
acho que está na hora de pararem.
Já conhecemos vírus com resistência a todos [fala com ênfase] os
tipos de droga. Das pessoas que
chegam à nossa clínica, 50% carregam vírus resistentes a múltiplas drogas.
O que David Ho e seus colegas
conseguiram foi assustar o pessoal em Nova York. Para começar, esse cara [o homossexual
portador do vírus] não é multirresistente, uma vez que está sendo
tratado com sucesso agora.
Segundo, se fosse resistente, isso
não é notícia, tem no mundo inteiro. O que ninguém lembrou de
dizer nesse anúncio idiota é que
virulento num indivíduo provavelmente quer dizer inócuo na
população -esses vírus muito
agressivos normalmente não são
bons de transmissão. A comunidade científica aqui nos EUA está
cheia deles. Passaram dos limites.
Folha - O senhor mencionou novas estratégias para tentar vencer
a resistência do HIV. Quais são as
mais promissoras?
Gallo - Nós já fizemos grandes
avanços na compreensão de como o HIV entra nas células. O
grande salto seria a descoberta de
novas classes de drogas capazes
de impedir o vírus de fazer isso,
bloqueando o receptor de quimocina CCR5 [uma das fechaduras
químicas às quais o patógeno precisa se ligar para atravessar a
membrana das células].
Folha - Como é que o sr. imagina
que o vírus vá evoluir daqui para a
frente? A resistência deve se tornar
um problema insustentável?
Gallo - É um problema sério nos
Estados Unidos, na Europa, onde
quer que as drogas tenham sido
usadas. Mas esses mutantes resistentes não são supervírus; de fato,
em geral são menos infecciosos.
Não vejo nenhum monstro surgindo. Você pode fazer com que
os leões fiquem um pouquinho
diferentes, mas não dá para transformar leão em girafa.
Há algumas coisas que o HIV
precisa manter para conseguir
afetar o sistema imune [de defesa
do organismo], e ao fazer isso é
muito improvável que ele passe a
ser transmitido casualmente.
Folha - E as estratégias de vacinas, quais são mais promissoras?
Gallo - Sempre se pode pensar
em dois tipos de vacinas, as terapêuticas e as preventivas. As terapêuticas podem ser usadas para
fortalecer o sistema imune de
quem tem a doença, e algumas
conseguiram sucesso modesto.
Quanto às preventivas, ninguém
chegou à que todo mundo está esperando -a que ganharia a Copa
do Mundo, no seu país.
As vacinas que estão sendo testadas agora foram projetadas de
forma racional, mas é improvável
que sejam muito eficazes. Eu acredito -alguns cientistas discordam de mim, mas prefiro confiar
nos meus instintos- que entender cientificamente como o HIV entra nas células é o
fator crítico para
uma boa vacina.
O nosso instituto está muito
comprometido
com essa linha de
pesquisa. Temos
uma vacina candidata com essas
propriedades sendo desenvolvida
aqui. Esperamos
que em três ou
quatro anos consigamos verificar se
ela é capaz de funcionar. Conseguimos desenvolver
anticorpos capazes de neutralizar
os diferentes tipos
de HIV, o que é
um avanço significativo.
Folha - Essa diversidade do vírus
é o xis da questão, certo? Se você
não consegue cobri-la, não há como criar uma boa vacina.
Gallo - Não, acho que a diversidade nós conseguimos enfrentar.
O que mais me incomoda é o fato
de o HIV ser um retrovírus [com
material genético na forma de
RNA, e não de DNA]. Como retrovírus, ele se integra [criando
trechos de DNA dentro das células do doente, o que torna sua
multiplicação perpétua]. Ou seja,
o único jeito é barrar a infecção na
porta. Talvez você tenha de tentar
imunização esterilizante, o que
significa bloqueio total da infecção. Ninguém jamais conseguiu
isso na história da vacinologia.
Folha - O sr. acredita que as lições
aprendidas com a Aids vão ajudar o
planeta a lidar com novas doenças
emergentes?
Gallo - É claro que isso tem estado muito mais na cabeça das pessoas. Mas acho que ainda falta um
ingrediente. Quando nós descobrimos a causa da Aids, não havia
ninguém designado com essa tarefa; a coisa aconteceu meio por
acidente. Não dá para esperar que
uma instituição como os CDCs
[Centros de Controle e Prevenção
de Doenças dos EUA] conheça todos os vírus do mundo. Minha sugestão, então, é que nós construamos centros de excelência em virologia nos Estados Unidos, e
também na Europa e no Japão.
Cada um deles poderia cobrir
uma ou duas categorias de vírus e
ficaria responsável por epidemiologia e vigilância. Esses centros
deveriam ter relação próxima
com pelo menos dois centros
num país em desenvolvimento.
Uma coisa está clara: aprendemos
uma lição importante. A arrogância em relação às doenças infecciosas está encerrada, e acho que
para sempre.
Folha - A polêmica envolvendo o
sr. e o pesquisador francês Luc
Montagnier em relação à "paternidade" do HIV ficou famosa, com
acusações de má-fé de ambos os lados. Qual o legado dessa briga?
Gallo -Não acho que exista algum legado, fora o fato de que nós
dois perdemos muito tempo e de
que alguns dos
meus colaboradores passaram por
coisas totalmente
desnecessárias.
Foi uma briga entre governos e instituições, e se voltou contra mim
como estratégia
de advogados baseados em, acredite ou não, Nova
York, que estavam representando os franceses. A
realidade é que,
em termos de opinião científica,
nunca houve desentendimento
entre nós. E raiva
só houve durante
um ano.
Acho que saí da
faculdade e do
meu laboratório
completamente despreparado
para lidar com o mundo da grande ciência e da política. Hoje, parece-me que um cientista que vai
trabalhar com pesquisa de alto nível precisa conhecer um pouco de
política, um pouco de legislação e
sobre como patentes funcionam.
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