São Paulo, sexta-feira, 16 de novembro de 2001

Próximo Texto | Índice

MEDICINA

Molécula invade o câncer e o destrói com dose pequena de radiação; teste com humanos pode começar em 2002

Proteína radioativa mata célula de tumor

SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

A estratégia militar que, segundo o poeta grego Homero, fez ruir as defesas da ultrafortificada cidade de Tróia pode fazer a mesma coisa com outro inimigo até agora praticamente imbatível: o câncer.
O cavalo de madeira oco que teria transportado soldados inimigos para dentro da cidade pode ser só uma lenda, mas a pesquisa chefiada por David Scheinberg, do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, em Nova York, é bem real. Foi testada em culturas de células humanas e em camundongos doentes e funcionou.
Tudo que a equipe precisou fazer foi encaixar um anticorpo, proteína produzida pelo corpo para combater corpos estranhos (e normalmente indesejados) em seu interior, a um átomo bem pesado. Então, injetar punhados desses conjuntos no organismo.
Os anticorpos foram escolhidos a dedo. Cada um deles era capaz de localizar e invadir um determinado tipo de célula cancerosa. O átomo também foi bem selecionado. O critério era que ele precisava ser instável, ou seja, radioativo, na medida certa.
Um elemento é radioativo quando seu núcleo atômico é tão grande que não há forças suficientes para mantê-lo coeso por muito tempo. O que acaba acontecendo é que ele sofre decaimento -perde um pedacinho e libera a energia que estava sendo consumida para manter esse pedaço grudado. Essas partículas liberadas (que podem ser dos tipos alfa, beta ou ômega, dependendo do pedaço que os átomos perdem) são capazes de fazer um estrago fenomenal em coisas vivas, como células, cancerosas ou não.
A medida que os cientistas usam para avaliar quão rápido um elemento sofre decaimento é chamada de meia-vida (o tempo que leva para que metade dos átomos de uma amostra perca pedaços e se transforme, por consequência, em outro elemento).
Os cientistas precisavam de um átomo que não tivesse uma meia-vida tão longa que inutilizasse o tratamento, nem uma tão curta que não permitisse que os anticorpos chegassem à célula cancerosa. Eles começaram seus estudos usando bismuto, mas a meia-vida era muito curta: apenas 46 minutos. Acabaram usando o actínio, com meia-vida de 10 dias.
A idéia era que o "anticorpo de Tróia" entrasse na célula-alvo e ficasse por lá até que ocorresse o decaimento do actínio, disparando uma partícula alfa (veja quadro à direita) que mataria a célula. Se isso ainda não fosse suficiente, o recém-formado frâncio (o actínio decaído) ainda liberaria uma partícula alfa, decaindo novamente. O processo de decaimento aconteceria mais duas vezes, antes que o átomo se tornasse estável. Ou seja, a célula cancerosa seria "baleada" com quatro tiros, para garantir que fosse morta.

Prática
Os primeiros testes foram feitos in vitro, com culturas de células de vários tipos de câncer humano, como leucemia, linfoma, tumor de mama, ovário, cérebro e próstata. Os tecidos cancerosos foram todos destruídos. Restava saber se a estratégia não mataria também o paciente no processo.
Por isso, numa segunda etapa, resolveu-se testar o efeito em camundongos vivos, induzidos a desenvolver equivalentes ao câncer de próstata e ao linfoma.
A injeção de anticorpos modificados causou regressão nos tumores e prolongou a vida dos animais submetidos ao tratamento. Camundongos com o tumor similar ao de próstata, por exemplo, sobreviveram em média 33 dias sem tratamento. Com as injeções, eles sobreviveram por pelo menos dez meses e não apresentavam sinais do tumor no momento da morte.
Os pesquisadores agora estão pleiteando o início dos testes com seres humanos, que a FDA (agência que regula medicamentos e alimentos nos EUA) deve aprovar para o ano que vem.
Para Scheinberg, a técnica pode ser eficiente no combate ao câncer, mas não será a solução definitiva para o problema. "Não há soluções mágicas", ele disse à Folha. "Mas pesquisadores estão fazendo progressos constantes no tratamento do câncer a partir de uma variedade de abordagens."
O estudo é fruto de pesquisas que vêm sendo aprimoradas pelo grupo há duas décadas. "O conceito de usar partículas alfa nasceu conosco há 20 anos. Os detalhes dessa nova idéia têm aproximadamente três anos", diz o cientista. Os resultados mais recentes dos experimentos estão publicados na edição de hoje da revista norte-americana "Science" (www.sciencemag.org).



Próximo Texto: Geofísica: Pesquisadores localizam fonte de magma que alimenta o Vesúvio
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.