São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

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Limpando o tanque

Colunista do "New York Times" propõe em livro que EUA usem energias renováveis para restaurar hegemonia

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Como acabar com o terrorismo islâmico, enfraquecer tiranos à Hugo Chávez e Vladmir Putin, tirar do buraco a maior economia do planeta e ainda de quebra salvar a Terra dos piores efeitos do aquecimento global? Não, a resposta não é "Barack Obama", embora o presidente eleito dos EUA possa ter um papel decisivo nisso. Para o jornalista americano Thomas Friedman, colunista de política externa do "The New York Times", todos esses problemas podem ser resolvidos por duas palavras: revolução energética.
Essa é a essência de "Hot, Flat, and Crowded: Why We Need a Green Revolution - and How it Can Renew America" ("Quente, Plano e Abarrotado Por Que Precisamos de uma Revolução Verde - e Como Ela Pode Renovar a América"), livro de Friedman lançado em setembro nos Estados Unidos.
Se Obama ainda não leu, deveria fazê-lo -assim como qualquer pessoa que não tenha chegado ontem de Marte ou não planeje voltar para lá no futuro próximo. Nas suas 438 páginas, o jornalista argumenta que investimentos maciços em novas tecnologias de energia, aliados a uma dose de regulação esperta do governo (ainda mais agora que governos estão na moda), podem criar uma indústria verde multibilionária que colocaria as engrenagens enferrujadas do capitalismo americano para rodar novamente. E o primeiro passo para isso é "um presidente que não tenha medo de fazer o que for preciso para liderar [a revolução verde]". Algum candidato?
Um suprimento ilimitado de "elétrons limpos, baratos e confiáveis" produzidos por essa revolução, diz Friedman, teria sobre o planeta o mesmo impacto transformador da internet. Ajudaria cidadãos a se conectarem e as empresas a competirem com mais eficiência. Reduziria a pilhagem dos recursos naturais que causa o aquecimento global. Como os trabalhos verdes poderão estar em qualquer lugar do mundo, com computadores "made in USA" ligados a painéis solares "made in USA", o inchaço urbano também diminuiria. De quebra, os EUA reduziriam sua dependência de combustíveis fósseis vindos de lugares perigosos, como o Iraque. Com o preço do óleo em queda, regimes autoritários cairiam junto.
A democracia que George W. Bush tentou implantar pelas armas no Oriente Médio, diz Friedman, viria naturalmente caso os americanos parassem de financiar petroditadores e terroristas ao abastecer suas SUVs com gasolina barata.

A serviço da Alemanha
Donos das melhores universidades e dos melhores institutos governamentais de pesquisa, os EUA parecem dormir em berço esplêndido enquanto se trata de produzir inovação tecnológica -o motor do capitalismo americano- em energia limpa. O último grande avanço na área, diz Friedman, aconteceu em 1957, com a instalação da primeira usina nuclear.
Enquanto isso, os concorrentes dos EUA começam a perceber que, num mundo quente, plano e abarrotado, a indústria do futuro é a verde. O sexto homem mais rico da China hoje é o dono de uma fábrica de painéis solares. E uma empresa de tecnologia solar criada em Ohio teve de se nacionalizar alemã porque era impossível nos EUA dar escala à produção para tornar o negócio competitivo.
E nos Estados Unidos... bem, o símbolo da atitude do governo americano em relação à energia renovável foi o primeiro ato do presidente George Bush, pai, ao assumir o governo: mandar tirar os painéis solares instalados por Jimmy Carter no teto da Casa Branca.

O baiji e o "grid"
Friedman usa seus talentos de repórter para fazer um livro que é ao mesmo tempo denso em informação e irresistível de ler. Conecta pontos aparentemente tão distintos quanto a rede elétrica americana (o "grid") e a extinção do baiji, o boto do rio Yang-Tsé. É difícil discordar de seus argumentos, ainda mais quando eles são apoiados não por ecoxiitas, mas por CEOs do calibre de Bill Gates e Jeffrey Immelt, da GE.
E é justamente aqui que Friedman se diferencia de outro ícone da defesa do clima, Al Gore. Em vez de só apontar a causa da crise, "Hot, Flat, and Crowded" mostra como solucioná-la usando nada mais do que as armas convencionais do bom e velho capitalismo. Isso é algo com o que os americanos conseguem simpatizar, ainda mais quando o que espera do outro lado é a promessa de uma "América" (pronuncie com o sotaque do Mangabeira Unger) grande e forte, dominando esse admirável mundo limpo.
É claro, os leitores desse lugarzinho pequeno chamado resto do planeta podem não se sentir confortáveis com a obsessão de Friedman por restaurar a hegemonia dos EUA -ainda mais agora que a crise faz muita gente olhar para os americanos mais com pena do que com inveja. E nada garante que o capitalismo consiga produzir o ciclo de inovação antevisto pelo autor para limpar a matriz energética global; ao contrário, as leis da termodinâmica costumam conspirar contra as tentativas da humanidade de criar energia maciçamente sem destruir alguma coisa.
Mas, num momento em que um mulato se elege presidente dos EUA prometendo "empregos verdes" e menciona os desafios de "um planeta em perigo" em seu discurso de vitória, sonhar nunca foi tão barato.


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