São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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+ Marcelo Leite

A morte das espécies


Com o terceiro ramo da árvore da vida, as coisas só complicaram

A coluna de hoje começou a nascer com uma indicação do biólogo João Francisco Botelho (autor de uma instigante dissertação de mestrado à qual ainda voltarei). Era um editorial de Adam Wilkins no periódico "BioEssays" deste mês, sob o título "Cai a ficha (finalmente) para a indústria da biotecnologia: genes não são agentes autônomos, mas funcionam dentro de redes!".
Vale a pena ler o editorial, que ecoa muitos temas tratados aqui nos últimos cinco anos. Wilkins se espanta, como eu, com a incapacidade de capitalistas da biotecnologia enxergarem os buracos na idéia de "gene industrial" (numa palavra: patenteável). Vou passar batido, porém.
Ocorre que Wilkins cita dois autores que em geral me fazem cismar. O primeiro é Denise Caruso, jornalista que escreveu um bom livro -crítico- sobre transgênicos, "Intervention".
Importa aqui o outro, Freeman Dyson, de quem li "O Sol, o Genoma e a Internet" (e não gostei). Wilkins tampouco gostou de "Nosso Futuro Biotecnológico", que Dyson publicou no jornal "The New York Review of Books" em julho. É coisa de louco. Dyson delira com ferramentas biotecnológicas acessíveis como microcomputadores, que tornarão cada um de nós capaz de construir quimeras de carne e osso -e plantas com folhas negras de silício- no quintal.
O grande mérito do pequeno ensaio é chamar a atenção para um último texto, de Carl Woese e Nigel Goldenfeld, que saiu na "Nature" em 25 de janeiro, "A Próxima Revolução da Biologia". Com ele esta coluna chega enfim ao tema do título. Para quem não conhece, Woese é o homem que acrescentou um ramo à árvore da vida. Até seus estudos moleculares com microrganismos, havia só dois grandes tipos de seres vivos reconhecidos: bactérias e o resto. Ou seja, procariotos (unicelulares sem núcleo) e eucariotos (uni ou pluricelulares com núcleo, quer dizer todos os fungos, animais, plantas e mais um monte de coisas).
Emerge toda uma outra classe de microrganismos, Archaea, às vezes chamados de arqueobactérias. Surgiu o terceiro ramo. Desde então as coisas não pararam de se complicar.
Bactérias e arqueobactérias não apenas compõem dois terços da árvore da vida como são os seres mais abundantes da Terra. Estima-se que só no corpo de cada um de nós existam 1 quatrilhão delas. Para piorar, são um tanto promíscuas -têm o hábito de trocar DNA com qualquer um, parente ou não. É o que se chama de transferência horizontal de genes.
Não é preciso ser gênio para perceber que esse troca-troca bagunça o conceito tradicional de espécie. Na biologia bem-comportada de Lineu e Darwin, a coleção de genes característica da espécie é transmitida verticalmente, de uma geração a outra. A evolução dependeria, nela, da lenta acumulação de mutações no DNA.
Bactérias e suas primas, segundo Woese, são rápidas e solidárias -não reconhecem limites rígidos entre tipos de organismos. Como foram as primeiras a surgir e ainda dominam o mundo, a biologia de seres pluricelulares e sexuados é que seria um caso especial. Não a sua.
Woese pisa fundo no acelerador da teoria biológica. Diz que ela precisa sofrer uma grande subversão, para acomodar a noção de comunidades microbianas capazes de absorver e descartar genes de acordo com as mudanças do ambiente.
Uma nova e não menos grandiosa visão da vida. Afinal, durante uns 3 bilhões de anos isso era tudo que havia sobre a Terra. Sexo e indivíduos, nem pensar. De nenhuma espécie.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( www.cienciaemdia.zip.net ). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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