São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 2010

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+Marcelo Leite

A consciência do cururu


Sapo brasileiro "invasor" levou polêmica ao Oeste da Austrália


Conheço poucos bichos horríveis como um sapo-cururu. O Bufo marinus é tão feio, mas tão feio, que chega a parecer simpático, se encarado com alguma boa vontade. Simpatia, porém, tem limite.
Para mim, esse limite coincide com a linha grosseira do sangue quente. Ela mantém anfíbios, répteis e peixes do lado de lá, em que vivem os vertebrados indignos de comiseração. Aves, esses dinossauros caídos, ocupam uma posição ambígua; quando muito, dá para se compadecer de passarinhos pequenos.
Agora, cururus? Faça-me o favor. Além da feiura e do veneno (um coquetel de neurotoxinas capaz de pôr um cachorro mais empreendedor no bico do corvo), o sapo originário das Américas tornou-se uma praga em terras da Austrália, para onde foi levado em 1935.
É uma daquelas histórias de horror ecológico que professores de biologia adoram contar, como a dos coelhos e dos dingos (cães regredidos a um estágio feral) na mesma Austrália. Sem predadores e competidores naturais, espécies introduzidas num local acabam dizimando populações naturais. Foi o destino dos cururus. Deveriam controlar pragas de besouros nos canaviais australianos, mas se tornaram eles mesmo pragas.
Além da mortandade de insetos que nada tinham a ver com a história, muito bicho mais simpático anda esticando as canelas por lá depois de morder o Bufo marinus, com isso forçando mecanicamente a liberação das toxinas (é lenda a história de que o sapo "cospe" veneno). A primeira pessoa de quem ouvi que um sapo "brasileiro" é odiado na Austrália foi Cláudia Azevedo-Ramos, hoje diretora do Serviço Florestal Brasileiro. Especialista em cururus, ela deu consultoria por lá. Apesar dos esforços, prossegue desimpedida a migração dos sapos para o oeste australiano, seguindo uma rota ao norte.
Michael Kearney, da Universidade de Melbourne, estabeleceu que eles saltam de 0,3 km/h (sob 15C) a 2,2 km/h (a 30C). Mais quente ou mais frio que isso, o desempenho dos bichos cai muito. Foi o que relatei no blog Ciência em Dia em outubro de 2008 (http://tiny.cc/cDV2i).
Agora leio no boletim da revista "The Scientist" que em 2009 o cururu alcançou a Austrália Ocidental, Estado mais a oeste do país. E, com ele, chegou também a polêmica. O grupo de voluntários KTB-Kimberley Toad Busters (caçadores de sapos da região norte da Austrália Ocidental) está revoltado. Depois de matar mais de meio milhão de cururus em cinco anos de atividade, na tentativa de conter a marcha dos anuros para oeste, a ONG foi desprovida de sua principal arma antianfíbios, o CO2 (dióxido de carbono).
A determinação partiu do Departamento de Ambiente e Conservação do governo estadual. Um pesquisador da repartição fez experimentos com alguns sapos-cururus, cujos resultados teriam sugerido que a morte por exposição ao CO2 talvez não seja humanitária o bastante. Suspendeu-se seu uso até que novos testes sejam realizados.
O KTB se defende dizendo que o CO2 anestesia os bichos de imediato, sem sinais de estresse, e que eles ficam inconscientes até morrer. Lee Scott-Virtue, presidente do KTB, bufou: "Por que cientistas de uma agência governamental iriam impedir voluntários de usar o único método adequado para a eutanásia em larga escala de cururus ["cane toads", sapos-da-cana, em inglês] que é seguro para [esses] voluntários?" E eu nem sabia que os sapos-cururus também tinham consciência, além de veneno...

MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).

E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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