São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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+Marcelo Leite

Nanodemocracia


Confiança é bom, mas controle é melhor

Quase não se encontra um pesquisador que não seja favorável à democratização da ciência. Salvo aqueles casos patológicos de quem não acha necessário ter algo a dizer para a "dona Maria", todo mundo defende a necessidade de popularizar o conhecimento produzido pelos cientistas. Por pragmatismo ou por princípio -tanto faz. De um ponto de vista mais ambicioso e radical, porém, trata-se de uma democratização pela metade. Descer de vez em quando da torre de marfim, ou sair do laboratório de alta biossegurança, e deitar umas tantas pérolas aos poucos que se interessam. Mesmo entre cientistas petistas (com perdão pela rima pobre), é raro ver alguma proposta participativa. Dar voz ao público na escolha de prioridades de pesquisa? Nem pensar. No Brasil, pesquisador acha que as pessoas não precisam tomar parte nem na decisão sobre o que vão comer. Está aí o caso dos transgênicos, cuja aprovação os biotecnólogos pelejaram para manter nas mãos de "técnicos" da CTNBio. Deu certo, mas com alto custo político. Aliás, não é só no Brasil. Com a crescente especialização e a minúcia arcana dos projetos e editais, a deliberação se refugia por toda parte em comissões técnicas, longe das vistas do contribuinte, que paga a maior parte dos estudos. Só lhe resta confiar que as decisões serão sábias, pois controle que é bom não há. Pode ser diferente, contudo, mas para isso é preciso querer. Como está ainda na infância, uma boa área para começar é a nanotecnologia (o desenvolvimento de materiais e dispositivos na escala do bilionésimo de metro, ou milionésimo de milímetro). De cosméticos a medicamentos, a cornucópia de aplicações prometidas parece inesgotável. Muitos que pesquisam na área sabem, no entanto, que ela tem potencial para controvérsia. Alguns já se preocupam ao menos em não repetir os erros da biotecnologia. As mesmas propriedades físicas que tornam algumas nanopartículas tão atraentes para a indústria e a medicina, como sua alta reatividade química, também as tornam potencialmente perigosas para o ambiente e a saúde (a começar pela sua fabricação). Inalar nanotubos de carbono, por exemplo, pode ter efeito no pulmão similar ao de fibras de amianto. Por aqui, como estamos em marcha acelerada para voltar a ser um país agrícola, a discussão ainda não pegou. No Reino Unido, o Conselho de Pesquisa em Engenharia e Ciências Físicas (EPSRC, na sigla em inglês) se mostrou sensível à questão e ampliou uma consulta para ouvir o que o público tinha a dizer. Foi uma surpresa. Em jogo estava uma linha de pesquisa de 15 milhões de libras esterlinas (R$ 45 milhões) para fomentar estudos prospectivos de aplicações nanotecnológicas na medicina. Segundo a revista "Times Higher Education", o resultado levou o EPSRC a deixar de lado algumas das idéias iniciais. A vítima principal da consulta foi o conceito "teranóstico" (mescla de terapia com diagnóstico). O plano era financiar pesquisas que pudessem levar a dispositivos capazes de circular pelo corpo do doente monitorando substâncias indesejáveis e, ao mesmo tempo, dosando a liberação de remédios. No processo de consulta pública, ficou patente que as pessoas comuns não se sentiram confortáveis em ceder todo o controle a uma máquina -por menor que seja ela. Por ora, o projeto fica na gaveta. No nano e no macro, vale o dito alemão: confiança é bom, mas controle é melhor.

MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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