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Vigia é o "arqueólogo" de Santarém
DO ENVIADO A SANTARÉM
De bermuda e camiseta, Márcio
Amaral abre o portão de sua casa,
numa rua sem asfalto fora do centro de Santarém. Na garagem,
uma caixa de madeira repousa sobre uma mesa. Dela sai um volume enrolado em papel higiênico
que em segundos se revela um
verdadeiro tesouro: uma estatueta de cerâmica tapajônica.
Amaral, 35, segundo grau quase
completo ("Com um atraso pré-histórico", brinca), trabalha parte
do tempo como jardineiro e parte
como vigia de um depósito de
equipamentos mantido em Santarém pela arqueóloga Anna Roosevelt. Fascinado por civilizações
perdidas desde criança, foi treinado por Roosevelt em escavações.
Chegou a ser co-autor em pelo
menos um trabalho científico da
americana, que paga seu salário
-em dólares. Hoje, ele é a coisa
mais próxima de um arqueólogo
que Santarém possui.
"Ele sabe mais sobre cerâmica
Santarém do que qualquer pessoa", derrete-se a chefe. "Poucos
dos meus estudantes de pós têm o
treinamento que ele tem."
Sua coleção particular, fruto de
anos de coletas na cidade, possui
peças de fazer inveja ao pequeno
museu da prefeitura de Santarém:
fragmentos de cerâmica colorida
e decorada, ídolos de barro e até
mesmo muiraquitãs.
"Você vai perguntar: Poxa, mas
isso não é ilegal? Mas, já que o Estado não tem capacidade, eu, como cidadão, tenho o dever de zelar pelo patrimônio", argumenta.
A lógica do vigia não deixa de
ter sentido. Santarém simplesmente não tem arqueólogos profissionais. O escritório do Iphan
(Instituto Nacional do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Arqueológico) mais próximo fica a
uma hora de avião, em Manaus. E
o Museu Paraense Emílio Goeldi,
que concentra a pesquisa arqueológica na Amazônia, não tem uma
extensão em Santarém.
A equipe de Roosevelt é a única
a conduzir escavações sistemáticas na cidade, mas nenhum de
seus membros mora lá.
Coletas oportunistas
Amaral conta que começou sua
coleção em 1983, quando um primo que servia como soldado no
8º BEC achou uma lâmina de machado de pedra e a jogou no quintal. Desde então, não parou mais.
Faz suas coletas no "inverno"
amazônico (período das chuvas,
que começa em novembro),
quando a água lava a camada de
areia que recobre os estratos arqueológicos de Santarém, revelando as relíquias. Construções e
demolições são seus locais favoritos. "Essa aqui eu achei numa antiga companhia tabaqueira no
centro da cidade", diz, apontando
para uma das peças sobre a mesa.
Em outros casos, o arqueólogo
amador chegou tarde demais, como no de um conjunto de prédios
vendidos e demolidos que estavam em cima de um aterro pré-colombiano. "Perdeu-se tudo."
As coletas fortuitas acabaram
revelando objetos inesperados,
como um fragmento de barro
pintado de roxo, preto e branco.
Amaral vê semelhanças de estilo
com cerâmicas da Amazônia
Central, o que levanta questões
sobre contato entre tribos muito
distantes uma da outra. "Isso
nunca havia sido descrito para a
região de Santarém", diz.
A colaboração com Roosevelt,
que começou em 2000, já rendeu
três temporadas de campo para o
cientista amador. Na última, ele
foi diretor-assistente de escavações. Agora, espera concluir o 2º
grau para poder virar, oficialmente, arqueólogo -e estudar com
sua mentora em Chicago.
Enquanto isso, as coletas continuam -para desespero da mulher de Amaral, que não agüenta
mais ver caixas empilhadas em
casa. "Não vendo minha coleção.
Não negocio. Não sou "huaquero'", diz -em alusão aos saqueadores profissionais de sítios arqueológicos dos Andes.
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