São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 2005

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Vigia é o "arqueólogo" de Santarém

DO ENVIADO A SANTARÉM

De bermuda e camiseta, Márcio Amaral abre o portão de sua casa, numa rua sem asfalto fora do centro de Santarém. Na garagem, uma caixa de madeira repousa sobre uma mesa. Dela sai um volume enrolado em papel higiênico que em segundos se revela um verdadeiro tesouro: uma estatueta de cerâmica tapajônica.
Amaral, 35, segundo grau quase completo ("Com um atraso pré-histórico", brinca), trabalha parte do tempo como jardineiro e parte como vigia de um depósito de equipamentos mantido em Santarém pela arqueóloga Anna Roosevelt. Fascinado por civilizações perdidas desde criança, foi treinado por Roosevelt em escavações. Chegou a ser co-autor em pelo menos um trabalho científico da americana, que paga seu salário -em dólares. Hoje, ele é a coisa mais próxima de um arqueólogo que Santarém possui.
"Ele sabe mais sobre cerâmica Santarém do que qualquer pessoa", derrete-se a chefe. "Poucos dos meus estudantes de pós têm o treinamento que ele tem."
Sua coleção particular, fruto de anos de coletas na cidade, possui peças de fazer inveja ao pequeno museu da prefeitura de Santarém: fragmentos de cerâmica colorida e decorada, ídolos de barro e até mesmo muiraquitãs.
"Você vai perguntar: Poxa, mas isso não é ilegal? Mas, já que o Estado não tem capacidade, eu, como cidadão, tenho o dever de zelar pelo patrimônio", argumenta.
A lógica do vigia não deixa de ter sentido. Santarém simplesmente não tem arqueólogos profissionais. O escritório do Iphan (Instituto Nacional do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Arqueológico) mais próximo fica a uma hora de avião, em Manaus. E o Museu Paraense Emílio Goeldi, que concentra a pesquisa arqueológica na Amazônia, não tem uma extensão em Santarém.
A equipe de Roosevelt é a única a conduzir escavações sistemáticas na cidade, mas nenhum de seus membros mora lá.

Coletas oportunistas
Amaral conta que começou sua coleção em 1983, quando um primo que servia como soldado no 8º BEC achou uma lâmina de machado de pedra e a jogou no quintal. Desde então, não parou mais. Faz suas coletas no "inverno" amazônico (período das chuvas, que começa em novembro), quando a água lava a camada de areia que recobre os estratos arqueológicos de Santarém, revelando as relíquias. Construções e demolições são seus locais favoritos. "Essa aqui eu achei numa antiga companhia tabaqueira no centro da cidade", diz, apontando para uma das peças sobre a mesa.
Em outros casos, o arqueólogo amador chegou tarde demais, como no de um conjunto de prédios vendidos e demolidos que estavam em cima de um aterro pré-colombiano. "Perdeu-se tudo."
As coletas fortuitas acabaram revelando objetos inesperados, como um fragmento de barro pintado de roxo, preto e branco. Amaral vê semelhanças de estilo com cerâmicas da Amazônia Central, o que levanta questões sobre contato entre tribos muito distantes uma da outra. "Isso nunca havia sido descrito para a região de Santarém", diz.
A colaboração com Roosevelt, que começou em 2000, já rendeu três temporadas de campo para o cientista amador. Na última, ele foi diretor-assistente de escavações. Agora, espera concluir o 2º grau para poder virar, oficialmente, arqueólogo -e estudar com sua mentora em Chicago.
Enquanto isso, as coletas continuam -para desespero da mulher de Amaral, que não agüenta mais ver caixas empilhadas em casa. "Não vendo minha coleção. Não negocio. Não sou "huaquero'", diz -em alusão aos saqueadores profissionais de sítios arqueológicos dos Andes.


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