São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 1998.



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CIÊNCIA
Os limites da isenção

Vinculação com empresas farmacêuticas interfere na pesquisa médica
MAURÍCIO TUFFANI
Editor-assistente de Ciência

Uma polêmica iniciada há poucos dias demonstra como o ideal da busca da verdade científica pode sucumbir frente aos interesses dos grandes grupos econômicos.
Quase todas as pesquisas médicas que, entre março de 1995 e setembro de 1996, defenderam um tipo de droga muito usado para tratar doenças cardíacas foram direta ou indiretamente financiadas pelos mesmos laboratórios que fabricam esses medicamentos.
Essa afirmação foi feita por quatro pesquisadores em um estudo publicado na edição do dia 8 da revista "The New England Journal of Medicine", sediada em Boston, Massachusetts, que é uma das mais conceituadas do mundo na área da pesquisa médica.
Segundo Henry Thomas Stelfox, da Universidade de Toronto, no Canadá, ele e seus colegas indagaram aos autores de cerca de 70 estudos sobre o uso dessas drogas se estes tinham relações financeiras com os fabricantes desse tipo de remédio.
Participaram do estudo Grace Chua e Keith O'Rourke, também da Universidade de Toronto, e Allan S. Detsky, do Hospital Monte Sinai, da mesma cidade.
Os entrevistados foram classificados em três grupos com relação ao uso dos bloqueadores do canal de cálcio: os "defensores", que apoiavam o uso das drogas, os "neutros", que chegaram a resultados inconclusivos, e os "críticos", que foram contrários ao uso dos medicamentos.
As relações financeiras em questão compreendiam serviços de consultoria, pagamento de conferências, custeios de viagens, apoio a pesquisas e suporte educacional.
Stelfox disse que 96% dos defensores responderam "sim" à questão, em comparação com 60% dos "neutros" e 37% dos "críticos".
Essa história começou em 1995, quando outros estudos apontaram aumento do risco de infartos em pacientes que usavam esses medicamentos em comparação com outras drogas anti-hipertensivas.
Um dos principais estudos críticos dos bloqueadores dos canais de cálcio foi publicado em outra importante revista médica, editada pela Associação Médica Americana, o "Journal of the American Medical Association", mais conhecido pela sigla "Jama".
Em 23 de agosto de 1995, um estudo publicado no "Jama" afirmava que o uso dos chamados bloqueadores do canal de cálcio aumentava em 60% o risco de infartos em comparação com dois outros tipo de drogas, os beta-bloqueadores e os diuréticos, também usados contra a hipertensão.
Nesse estudo, Bruce Psaty e seus colegas da Universidade Washington, em Seattle, nos Estados Unidos, afirmaram que os médicos deveriam repensar o uso dos bloqueadores do canal de cálcio para pacientes com hipertensão arterial.
A partir de estudos como o de Psaty, surgiu uma longa controvérsia sobre quais seriam os medicamentos mais seguros no tratamento da hipertensão arterial.
"As relações financeiras entre médicos e a indústria farmacêutica são controversas porque elas podem incorrer em conflito de interesse", afirmaram Stelfox e seus colegas no estudo publicado no último dia 8.
Segundo os pesquisadores canadenses, não se sabe até que ponto o suporte financeiro por parte de indústria farmacêutica à pesquisa e à educação em medicina influencia as opiniões e o comportamento dos clínicos e pesquisadores.
"A profissão médica precisa desenvolver uma política mais efetiva sobre conflitos de interesse. Nós defendemos a total revelação das relações com fabricantes de produtos farmacêuticos para clínicos ou pesquisadores que escrevem artigos de pesquisa sobre esses produtos", afirmaram Stelfox e sua equipe.
Em 1990, o "New England" anunciou que passaria a não publicar estudos ou resenhas de autores direta ou indiretamente financiados por empresas produtoras dos medicamentos ou equipamentos apreciados pela pesquisa.
Mas essa política foi rompida de maneira não explícita, ao serem publicados no ano passado alguns estudos patrocinados por laboratórios farmacêuticos, segundo o jornal "The Boston Globe".
O "Jama", por outro lado, admite publicar estudos de pesquisadores envolvidos financeiramente com empresas responsáveis pelos produtos que são objeto da pesquisa, desde que esse tipo de vínculo seja apresentado ao leitor.
Esses fatos atingem em cheio a imprensa em geral, que se alimenta das informações veiculadas pelas publicações especializadas.
Mais do que nunca, parece que a imprensa deve aplicar à pesquisa médica a mesma receita sugerida para trabalhar com o poder em geral, formulada por Benjamin Bradlee, que foi editor-chefe do "The Washington Post": "Desconfiar do poder e duvidar da versão de quem governa".



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