São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009

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+Marcelo Leite

As cinzas de Drygalski


Explorador nem sempre entra no panteão dos heróis polares

A cultura alemã tem frases ótimas para quem admira sua ética do trabalho e da dedicação. Uma delas é a expressão "Glück des Tüchtigen", que poderia ser traduzida como "sorte dos esforçados". Um contrassenso, porque quer dizer que a sorte só existe para quem se encontra preparado.
Outra forma de dizê-lo seria afirmar que não há vento a favor para quem não sabe aonde quer chegar, dito que já foi atribuído a Sêneca. Ambos se aplicam ao explorador alemão Erich Dagobert von Drygalski (1865-1949). Um nome nem sempre lembrado para o panteão dos trágicos heróis polares.
Professor de geografia da Universidade de Berlim, Drygalski liderou uma expedição de quatro anos à Groenlândia. Com esse item de peso no currículo, foi escolhido em 1898 para chefiar outra expedição de seu país, ao polo Sul. Ela só partiu em agosto de 1901, com 31 embarcados na escuna dotada de motores auxiliares Gauss.
É difícil deixar de simpatizar com Drygalski quando se lê, na pág. 44 do guia "Lonely Planet Antarctica", de Jeff Rubin, que o explorador batizou seu navio em homenagem a Johann Carl Friedrich Gauss (1777-1855). Sim, o conhecido matemático alemão, do qual a maioria só se lembra pela curva da distribuição normal em forma de sino.
Ocorre que Gauss foi também um dos primeiros a calcular a posição do polo Sul magnético. Nada mais apropriado, assim, que dar seu nome a uma embarcação destinada a explorar a Antártida. Uma expedição que sobreviveria ao aprisionamento no mar congelado porque Drygalski confiava mais em seu poder de observação do que na sorte.
Em 22 de fevereiro de 1902, com o verão antártico já adiantado, o Gauss ficou preso no gelo marinho, em deriva para oeste. Nada a fazer, senão esperar pelo degelo a partir de novembro e contar com alguma sorte para livrar o navio. Nesse meio tempo, Drygalski desenvolveu um programa de atividades no navio, que incluía jogos, palestras, música e até um jornal.
Com 40 cães a bordo, parte do grupo aventurou-se numa excursão de trenós 80 km gelo adentro, até a costa antártica. Localizou-se um vulcão, chamado de Gaussberg. Homenagem ao navio, esta vez.
Em 29 de março, Drygalski subiu a 480 m de altitude num balão de hidrogênio cativo (preso por cabos ao chão) e narrou o que via aos que permaneceram embaixo -por telefone. Até grasnados de pinguim seus homens gravaram, com um fonógrafo primitivo.
Nada disso se compara, em inventividade, ao método empregado para livrar o navio do gelo, o que só ocorreria em 8 de fevereiro de 1903. Tentou-se de tudo um pouco, primeiro: furar, serrar e até dinamitar o gelo com 5 a 6 m de espessura. Até que Drygalski resolveu pôr em prática uma simples observação física.
O geógrafo havia reparado que a fuligem expelida pela chaminé do navio, quando caía sobre a neve, produzia pequenas áreas de derretimento. As cinzas, escuras, absorviam energia do sol e fundiam os cristais à volta. Drygalski mandou a tripulação deitar uma trilha de cinzas de carvão e lixo com 600 m de comprimento, até o mar aberto.
Logo um canal com 2 m de água se formou, mas era insuficiente para o navio avançar. O Gauss teve de esperar mais dois meses até que ele se aprofundasse o bastante para voltar a navegar.
Talvez alguma sorte tenha contribuído para o final feliz. Mas, como se diz no Brasil, é melhor não dar sopa para o azar.


MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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